08 maio 2015

A TRAGÉDIA DO GERMANWINGS E A MEDICINA DO TRABALHO.

postado em: Medicina do Trabalho

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REFLEXÕES A PARTIR DA DOR

Limites e erros da prática médica estão entre as lições da tragédia do Airbus 320

Certamente não há ninguém que não tenha ficado chocado diante das notícias da trágica ocorrência aérea, com avião da Germanwings, que fazia o trecho Barcelona-Düsseldorf, o qual, em altíssima velocidade se destroçou contra as rochas dos Alpes franceses, matando todos os passageiros e tripulantes. Mais chocados ainda ficamos ao tomarmos conhecimento da denúncia dos investigadores do acidente sobre a provável intencionalidade, sob o comando do copiloto Andreas Lubitz, de apenas 27 anos.

Junto com a notícia do suposto suicídio, acompanhado de 149 mortes que, aparentemente, nada tinham a ver com os problemas e intenções de Andreas, vieram muitas especulações sobre as razões do desatino fatal: diagnóstico de depressão, repetidas prescrições médicas, licenças médicas para afastamento do trabalho não cumpridas e outros detalhes sobre sua vida pessoal.

Nossas breves reflexões, movidas pela tristeza e dor, juntam-se, por certo, a milhares de outras, mundo afora, e são aqui partilhadas na página de fatos portadores de futuro, posto serem, também, aplicáveis a inumeráveis condições similares, mais encobertas e menos visíveis – quem sabe – do que essa recente tragédia aérea. Como conceituado por Michel Godet, esses fatos são, na verdade, “sinais ínfimos, por sua dimensão presente, existentes no ambiente, mas imensos por suas consequências e potencialidades” (Michel Godet). Vejo a tragédia do Airbus – entre outras – com esse significado, e explico-me por que.

Em primeiro lugar, cabe a reflexão de que os distúrbios mentais no mundo contemporâneo “vieram para ficar”: não somente sua ocorrência é extremamente elevada, como ela está em ascensão, como apontam os estudos epidemiológicos no mundo inteiro. Entre nós, o estudo São Paulo Megacity, conduzido pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, mostrou que 29,6% dos indivíduos na Região Metropolitana de São Paulo – RMSP apresentaram transtornos mentais nos 12 meses anteriores à entrevista. Os transtornos de ansiedade foram os mais comuns, afetando 19,9% dos entrevistados. Em seguida, aparecem transtornos de comportamento (11%), transtornos de controle de impulso (4,3%) e abuso de substâncias (3,6%). A RMSP também teve a mais alta proporção de casos de transtornos mentais considerados graves (10%), bem acima do estimado em outros 14 países avaliados. Ou a metodologia de aferição está errada, ou o tamanho do problema é mesmo assustador. O que fazer, em termos sociais e em relação ao mundo do trabalho?

Em segundo lugar, cabe refletir sobre a impotência da Medicina para identificar as pessoas com reais problemas, e que constituem ameaças para a vida em sociedade, e esta dificuldade é ainda maior no campo da Medicina do Trabalho. Como bem adverte o Prof. Joel Birman, psicanalista e Professor Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ, “não será com atestados de psiquiatras, psicanalistas e psicológicos que vamos conseguir controlar atitudes como a do piloto suicida”. Para ele, não existe nenhuma possibilidade de que a Psiquiatria possa prever atos trágicos como esse. “Na época de gestão de riscos é preciso dizer, em alto e bom som, que as normas não conseguem controlar nem o desejo nem o que existe e imprevisível no sujeito”, conclui o Professor. Aliás, a relativa inutilidade dos exames médicos admissionais também se aplica à maioria de outras situações.

Em terceiro lugar, lembraria o que diz o Prof. Ildeberto Muniz de Almeida, da UNESP, sobre o problema dos acidentes do trabalho: eles constituem fenômenos complexos, desencadeados por uma rede de numerosos fatores, de naturezas variadas, e que interagem entre si, objeto de interesse de diferentes áreas do conhecimento. “Assim, para que seus múltiplos aspectos sejam adequadamente explorados, seu estudo requer abordagens transdisciplinares, com concurso de diversas especialidades, como engenharia, ergonomia, psicologia, antropologia, medicina, ciências sociais, dentre outras”. Talvez a prevenção de ocorrências como a do Airbus – e outras equivalentes – devesse ter tal enfoque.

Por último, encerro minha breve reflexão, estimulando a que não percamos de vista a dimensão do espiritual, a necessidade de preencher – com qualidade – o vazio e as carências do coração das pessoas. São dimensões geralmente esquecidas. Creio, contudo, que o resgate de sua valorização poderia ser um fato portador de promissor futuro! Esta é a mensagem que deixo a todos nós, passageiros…

Autor: Prof. Dr. René Mendes [Médico especialista em Saúde Pública e em Medicina do Trabalho. Livre-Docente em Saúde Pública pela USP. Professor titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social, da Faculdade de Medicina da UFMG (Belo Horizonte). Foi presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT) nas gestões 2001-2004 e 2004-2007. Foi membro, por dois mandatos, do Conselho Diretor (Board) da Comissão Internacional de Saúde no Trabalho (ICOH)].

Fonte: Revista Proteção – maio/2015.

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