Por diferentes razões, observa-se que um dos atuais discursos de moda – quase um mantra – é o das vantagens do retorno precoce ao trabalho, pós-afastamento por motivos de doença ou acidente que tenha impactado sobre a capacidade laborativa do trabalhador, independentemente de ser ou não relacionado ao trabalho. Aliás, a preocupação já antecede a própria avaliação da capacidade para o trabalho, ou seja, dependendo da política de SST – governamental, da organização, e da categoria em que o trabalhador está inserido -, bem como das ferramentas e critérios utilizados para avaliar a funcionalidade, e ainda, das atividades exercidas pelo trabalhador, seria possível, até, evitar o afastamento. Digo mais: poder-se-ia até evitar o evento – acidente ou doença – sobretudo quando decorrentes ou agravados pela forma como o trabalho é organizado e executado. Em suma: a preocupação pelo retorno do trabalho poderia ser tão eficaz, a ponto de as pessoas não mais se afastarem por motivos de saúde/doença, e, portanto, não haveria preocupação com o retorno dos que não foram, e, idealmente, com a doença ou acidente dos que não adoeceram nem se acidentaram, como ideal máximo da saúde!
Cheio de armadilhas e tentações, esse percurso aponta para um horizonte parcialmente alcançável, sobretudo no que se refere ao adoecimento e à incapacidade relacionados com o trabalho, posto serem, por definição, eventos potencialmente evitáveis. Daí, talvez, mencionar o Prof. Luigi Devoto (1864-1936), quando idealizou e, em 1910, inaugurou a Clinica del Lavoro, em Milão. Questionado sobre o título “clínica do trabalho” (lavoro), e não “clínica do trabalhador” (lavoratori), ele respondia, com convicção: “…perché il malato è il lavoro ed è questo che deve essere curato affinché siano prevenute le malattie dei lavoratori”, isto é, quem estava doente era o trabalho, e havia que “tratá-lo”, e este seria o grande desafio para que não fossem mais produzidas doenças nos trabalhadores! Como é bem conhecido, a Clinica del Lavoro de Milão tornou-se uma das maiores referências italianas e mundiais para o estudo do adoecimento relacionado ao trabalho, focando, porém, a necessária correção dos ambientes e das condições patogênicas, por meio de intervenções nos processos de trabalho, com o apoio de áreas como a Segurança do Trabalho, a Higiene do Trabalho, e o que, atualmente, denominamos Ergonomia, entre outras áreas e campos igualmente importantes.
E onde estaria o fato portador de futuro, tomado como “sinais ínfimos, por sua dimensão presente, existentes no ambiente, mas imensos por suas consequências e potencialidades” (Michel Godet)? Para este analista, estaria exatamente no resgate e revalidação do entendimento sobre a centralidade da “saúde” dos ambientes e condições de trabalho, como condição sine qua non para tornar possível não apenas o retorno dos trabalhadores afastados por incapacidade laborativa decorrente de doença ou acidente relacionado com o trabalho – como, e principalmente -, fazer com que os trabalhadores não adoeçam ou se acidentem em decorrência do trabalho, e, por conseguinte, não se incapacitem.
Há que se reconhecer que esse entendimento – ao mesmo tempo antigo e novo – é ainda extremamente limitado, e quando presente, ainda é movido, no momento, por preocupações lícitas, mas precipuamente econômicas (redução de absenteísmo, redução de FAP e outros ganhos diretos ou indiretos), que se sobressaem aos outros ditames de natureza ética, social ou mesmo de imagem e reputação da organização empregadora.
Na verdade, o tema foi trazido para a edição de julho de 2015, pelo o que ouvimos e vimos no recente 31º Congresso Internacional de Saúde no Trabalho, promovido pela ICOH, em Seul, bem como no 8º Congresso de Reabilitação Profissional, realizado em Campinas – SP. E nesses contextos, sobressaíram-se, com muita visibilidade, as 32 “Diretrizes sobre o Retorno ao Trabalho”, desenvolvidas pela Associação Internacional de Seguridade Social – ISSA/AISS, as quais muito ajudam a organizar as políticas, os programas e os processos de retorno seguro ao trabalho. Com o entendimento promovido pelas “Diretrizes da AISS”, o retorno ao trabalho começa bem antes do afastamento: começa pela transformação dos ambientes e condições de trabalho, de modo a torná-los promotores de saúde, e não de doença e incapacidade. Posto em prática na sociedade brasileira de hoje, este conceito poderia se tornar em um enorme fato portador de futuro!
Autor: Prof. Dr. René Mendes [Médico especialista em Saúde Pública e em Medicina do Trabalho. Livre-Docente em Saúde Pública pela USP. Professor titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social, da Faculdade de Medicina da UFMG (Belo Horizonte). Foi presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT) nas gestões 2001-2004 e 2004-2007. Foi membro, por dois mandatos, do Conselho Diretor (Board) da Comissão Internacional de Saúde no Trabalho (ICOH)].
Fonte: Revista Proteção – julho/2015.