Ele tem apenas 16 anos. Vai para a escola como um garoto normal, mas seu rendimento é muito menor do que o de outros alunos da mesma faixa etária. O professor chama a sua atenção frequentemente, mas as broncas não funcionam: ele está sempre aéreo, no mundo da Lua, desatento em relação ao que acontece ao seu redor. As notas estão cada vez piores.
No intervalo, ele não tem amigos. Procura pelo canto mais vazio do pátio e fica por ali mesmo viajando em seu universo perfeito. Em casa, os pais já começam a demonstrar certa preocupação. Passou a se alimentar mal e quase não interage com os outros membros da família, permanecendo trancado em seu quarto durante toda a sua estadia na residência.
Atividades ao ar livre que antigamente o divertiam – jogar bola, soltar pipa, andar de bicicleta – não interessam mais. Chegou a hora de buscar ajuda profissional. Você se enganou caso tenha pensado que estivéssemos descrevendo um caso de dependência química – o problema aqui não é o álcool, o cigarro, a maconha ou a cocaína. Desta vez, estamos falando do vício em internet.
A brincadeira que virou um pesadelo
Acredite ou não: o conceito de dependência em internet começou como uma piada. Em 1995, o psiquiatra norte-americano Ivan Goldberg publicou um artigo satírico em seu site pessoal no qual ele descrevia um problema recém-descoberto e batizado como IAD (sigla para Internet Addiction Disorder, ou Desordem do Vício em Internet).
O que Goldberg não imaginava era que a imprensa e a comunidade científica passariam a tratar o IAD como um problema real, usando como gancho os rápidos avanços tecnológicos ocorridos na década de 90. Com o advento dos navegadores, buscadores e computadores pessoais, era natural que tal assunto chamasse atenção até mesmo dos leigos.
Ainda que não seja mencionado na versão mais recente do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, datado de 2013), os profissionais de psiquiatria e psicologia do mundo inteiro são unânimes: o vício em internet existe e é uma doença bastante perigosa. Hoje em dia temos milhares de casos em todo o planeta, incluindo no Brasil, onde ainda é bastante difícil encontrar tratamento especializado para quem sofre desse mal.
Fugindo dos problemas
Assim como outros transtornos psicológicos, a dependência em internet pode afetar qualquer pessoa, mas alguns indivíduos possuem maior predisposição a desenvolverem a doença. De acordo com a psicóloga Daniela Faertes, especialista em mudança de comportamento, pessoas introvertidas e que têm dificuldades em manter relações interpessoais são as que possuem maior tendência a se tornarem viciadas.
“A faixa etária mais atingida é a de adolescentes, embora adultos, jovens e crianças também aparecem com frequência”, afirma. Daniela ressalta ainda que a condição está mais associada à classe média, que possui maiores recursos para acessar a internet. Contudo, a explosão das lan houses e a democratização dos dispositivos móveis têm mudado esse cenário, expandindo o problema também às classes mais baixas.
Os fanáticos pela internet geralmente são afetados por problemas pessoais ou familiares, incluindo bullying, exclusão social, frustrações profissionais, conturbações no casamento e até mesmo dificuldades financeiras. Tendo isso em mente, o acesso frenético à internet pode ser entendido como uma válvula de escape desse indivíduo – um local confortável que acaba tomando o lugar do mundo real.
Um estudo realizado em 2014 pela agência estadunidense A. T. Kearney mostrou que o Brasil é o país com maior número de viciados em internet: 51% dos entrevistados afirmaram permanecer online por mais de 12 horas por dia. Desse montante, 32% tinham entre 26 e 35 anos, enquanto 21% possuíam de 16 a 25 anos de idade. Os homens são a maioria: 53%, contra 47% de mulheres viciadas.
O diagnóstico
Ainda que esses dados sejam claramente alarmantes, o Brasil dispõe de poucos recursos para lidar com o IAD de forma rápida e eficiente. É muito raro, por exemplo, encontrar profissionais e redes ambulatoriais capazes de lidar com essa condição. A Clínica Terapêutica Viva – que possui mais de 15 unidades espalhadas pelo país – é uma das poucas instituições que contam com um quadro de psicólogos preparados para tratar esse tipo de vício.
Em entrevista ao TecMundo, Ana Laura Parlato, diretora da clínica, nos contou um pouco sobre os métodos utilizados para diagnosticar o quadro de dependência em internet e separá-lo de um perfil normal de uso da web. De acordo com Ana Laura, os profissionais da saúde observam critérios como tolerância (a necessidade de se manter conectado o tempo todo para se satisfazer ou diminuir a ansiedade) e abstinência (sonhar sobre o assunto ou ficar agitado ao ser privado de acesso).
Outro critério importante é o uso contínuo de internet até mesmo quando se tem um persistente ou recorrente problema físico, social, ocupacional ou psicológico que parece ser causado ou exacerbado por esse uso da web. “Essas mudanças de hábitos podem ser discretas, como mudanças nos horários das refeições, até mudanças em escalas de trabalho ou diminuição da jornada para poder ficar mais tempo no computador”, explica.
Irritabilidade e depressão também são sintomas comuns dos doentes. No mês passado, noticiamos aqui mesmo no TecMundo o caso de uma estadunidense de 12 anos que foi detida após tentar envenenar a própria mãe. O motivo? A jovem teria sido impedida de utilizar seu fiel smartphone. É até difícil não relacionar esse comportamento ao apresentado por dependentes químicos: usuários de substâncias ilícitas também demonstram violência caso permaneçam por muito tempo sem sua válvula de escape.
Desintoxicação tecnológica
É um consenso entre profissionais da saúde que a forma mais eficaz de controlar o IAD é usando a terapia cognitivo-comportamental (TCC), forma de psicoterapia também utilizado em outras compulsões e transtornos variados – incluindo fobia social, bipolaridade, anorexia nervosa e ludomania. Geralmente, também é necessário o uso de remédios. “A equipe técnica propõe as técnicas psicoterápicas a serem utilizadas, e o médico psiquiatra faz a indicação dos medicamentos, incluindo a possibilidade de utilizar os fitoterápicos”, informa Ana Laura.
Mas o tratamento nem sempre é tão simples assim. No final do ano passado, por exemplo, a China esteve sob os holofotes da comunidade científica internacional depois que o premiado fotógrafo Fernando Moleres divulgou algumas imagens retratando o cotidiano dos jovens internados no Daxing Internet Addiction Treatment Centre, um “retiro” em Pequim no qual adolescentes viciados precisam seguir uma rígida disciplina militar. Uniformizados, os pacientes trabalham, se exercitam e se enturmam para restaurar suas capacidades sociais.
Embora esse tipo de detox tecnológico – ou digital detox, como é conhecido em inglês – não seja muito popular por aqui, já são conhecidos casos de brasileiros que precisaram ser internados em clínicas para dependentes químicos. A aposentada Helena Ferreira, de 54 anos, é um excelente exemplo disso: ficou privada de qualquer acesso à internet por mais de quatro meses. Seus parentes decidiram tomar essa atitude radical depois que ela ficou anos sem sair de casa, não conseguindo largar o computador. O caso ocorreu no interior de São Paulo.
Estou viciado?
Vivemos em um mundo cada vez mais conectado, e ninguém pode negar que é extremamente difícil se manter longe de computadores, tablets, telefones celulares e outros sistemas inteligentes projetados para facilitar a nossa vida. Por isso, os profissionais de psicologia alertam para algumas práticas que precisam ser seguidas por qualquer pessoa a fim de evitar um eventual quadro clínico.
Para Daniela Faertes, é necessário que haja um autocontrole dos horários em que se acessa a internet e utiliza o telefone celular. “Uma das grandes questões é que, mesmo não sendo dependente, a internet provoca uma percepção distorcida da passagem do tempo e, como a gama de assuntos que pode ser acessada por ela é infinita, é necessário colocar um limite pessoal”, observa.
Já Ana Laura aconselha que o indivíduo faça uma análise de si mesmo para confirmar se não está indo longe demais. “Responda perguntas como quantas horas por dia você fica na internet, quais sites acessa com mais frequência e se o uso da web está trazendo consequências negativas nas principais áreas da vida, como relacionamentos e trabalho”, explica. Dependendo do resultado do autodiagnóstico, é essencial procurar ajuda profissional o mais rápido possível.
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