Prezados leitores.
Ainda em plena consternação pelo trágico 29/11/2016, com imenso respeito e solidariedade aos envolvidos, me aventuro a dissecar um pouco mais, sob a ótica legal, esse triste episódio da nossa história: o acidente que vitimou dezenas de profissionais, inclusive, vários atletas da equipe do Chapecoense.
Acidente de trabalho ou acidente de trajeto?
Antes de qualquer coisa, ressalto que abordarei esse texto como se todas as vítimas do acidente fossem exclusivamente os atletas da Chapecoense. Com fulcro na Lei Pelé (Lei 9.615/98), art. 28, parágrafo 4, considerarei também que todos eles estivessem sob a égide das normas gerais da legislação trabalhista e da seguridade social. Intencionalmente, excluirei passageiros, tripulantes e outros profissionais lamentavelmente também atingidos.
Assim sendo, fica mais fácil responder: não, não foi acidente de trajeto (também chamado de acidente de percurso ou acidente in itinere). Foi um acidente de trabalho, mas não foi um acidente de trajeto.
Apenas lembrando, todos os acidentes de trajeto são acidentes de trabalho, mas nem todos os acidentes de trabalho são acidentes de trajeto. Sim! Acidentes de trabalho representam um gênero do qual os acidentes de trajeto representam uma espécie.
Os acidentes de trabalho estão caracterizados entre os artigos 19 e 21 da Lei 8.213/91. Os acidentes de trajeto, por sua vez, também estão abarcados nesse texto mas qualificados unicamente no art. 21, inciso IV, alínea “d” da mesma lei, quando coloca:
Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei:
IV – o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho:
d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado.
Como o acidente envolvendo os jogadores da Chapecoense não se deu “no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela”, ele não pode ser caracterizado como um acidente de trajeto nos termos literais da lei.
Quem é o responsável legal pelo acidente ocorrido?
Também ensina a Lei 8.213/91:
Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei:
IV – o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho:
c) em viagem a serviço da empresa, inclusive para estudo quando financiada por esta dentro de seus planos para melhor capacitação da mão-de-obra, independentemente do meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do segurado.
Os atletas da Chapecoense estavam em “viagem a serviço da empresa”. Dessa forma, a responsabilidade legal do acidente recairá sobre a empresa, nos termos da legislação vigente.
A Chapecoense teve culpa?
Muitos estudiosos em aviação já adiantaram que a principal hipótese de causa do acidente foi a chamada “pane seca”. Faltou combustível. Nesse caso, a responsabilidade da Chapecoense estaria automaticamente excluída e recairia apenas ao piloto e dono da empresa aérea que operou o voo, certo? Errado.
Nos termos da legislação trabalhista e jurisprudência majoritária vigentes, a responsabilidade continuaria sendo da Chapecoense, independente da culpa do time no acidente aéreo. É o que chamamos no Direito de “responsabilidade objetiva”, aquela em que mesmo sem culpa (negligência, imprudência ou imperícia) há uma responsabilização do empregador. Essa regra está estampada no parágrafo único do art. 927 do vigente Código Civil, que assim nos traz:
Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Considerando que os jogadores da Chapecoense viajavam com enorme frequência, os riscos de um acidente eram inerentes a própria atividade que eles exerciam, o que caracterizaria a “responsabilidade objetiva” da Chapecoense.
Nesse sentido, também veio o julgado abaixo:
“A mãe de um empregado do Banco Bradesco S.A. que faleceu em um acidente automobilístico quando transportava valores entre as cidades vizinhas do seu local de trabalho para abastecer postos de atendimento do banco, vai receber R$ 1 milhão de indenização por danos morais. Apesar de não ter causado materialmente o evento, o empregador é responsável pelo resultado dele decorrente, pois, se não fosse por sua determinação, o empregado sequer estaria naquele local do infortúnio”, concluiu a ministra.” (Fonte: site do TST)
Corrobora com essa linha de pensamento uma interpretação analógica do acidente de trajeto que, tendo ocorrido em veículo disponibilizado pela empresa, resulta em responsabilidade do empregador pelo acidente, independente deste ter agido de forma culposa ou não (e conforme a grande mídia, o avião que caiu teria sido fretado pela Chapecoense pelo valor de R$ 500.00,00). Nessa esteira veio a seguinte decisão:
“Justiça do Trabalho reconhece responsabilidade objetiva por acidente de trajeto sofrido por colhedora de laranjas transportada em ônibus da empresa.” (Processo n. 0010123-68.2013.5.03.0042)
A “Chape” deve abrir a CAT para os envolvidos no acidente?
Sim, nos termos do art. 22 da Lei 8.213/91 que assim sentencia:
Art. 22. A empresa ou o empregador doméstico deverão comunicar o acidente do trabalho à Previdência Social até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável entre o limite mínimo e o limite máximo do salário de contribuição, sucessivamente aumentada nas reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social.
O piloto e dono da empresa não será responsabilizado?
Desde o início, avaliei esse acidente sob a ótica da legislação trabalhista. Nesse prisma, entendo que a responsabilidade recairá sobre a Chapecoense, independente de sua culpa, conforme argumentos já citados.
Em tese, o time futebolístico poderá acionar regressivamente a empresa aérea tecnicamente responsável pelo sinistro e reaver prováveis indenizações. Mas apenas em tese! Se a empresa aérea fosse brasileira, essa ação regressiva seria possível, nos termos do art. 934 do Código Civil Brasileiro. Como a empresa é estrangeira, seria necessário um estudo mais aprofundado acerca da legislação internacional que rege o assunto para afirmar essa possibilidade.
Esse é o meu atual entendimento, sempre passivo de modificações diante de novos aprendizados! Fiquem à vontade para opinar, alinhados ou em contrário.
Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assesoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Editor do “Reflexões do Mendanha”, no site www.saudeocupacional.org. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações.
NA MÍDIA
FOLHA DE SÃO PAULO:
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