Prezados leitores.
Diz-se comumente que o sigilo profissional (incluindo o sigilo médico) é um mandamento absoluto para o qual não existe ressalvas. A fonte dessa afirmativa inicia-se na Constituição Federal de 1988, que assim colocou em seu art. 5, inciso X:
“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
No entanto, toda vez que o interesse coletivo (ex.: segurança) se sobrepuser ao interesse individual da garantia da intimidade, o sigilo profissional pode, e, por vezes, deve ser quebrado! Um bom exemplo disso, apesar de não envolver o médico, é o “sopro do bafômetro”. Faz parte da intimidade de cada um beber ou não beber. Mas a partir do momento que eu bebo e dirijo, a questão sai da esfera individual e atinge a coletividade. O risco agora não é só meu, mas de todos. Daí o rigor da lei em permitir e exigir que minha intimidade seja quebrada em virtude de um bem coletivo maior: a segurança no trânsito.
Especificamente sobre o sigilo médico, assim nos ensinou Genival Veloso de França:
“Constitui-se hoje o sigilo médico um instrumento social em favor do bem comum e da ordem pública. Sendo assim a sua revelação, em situações mais que justificadas, não pode configurar-se como infração ética ou legal, principalmente quando visa proteger um interesse contrário superior e mais importante.”
A manutenção do sigilo é a regra. A “quebra” do sigilo é a exceção, por vezes necessária. O próprio Código de Ética Médica, em seu art. 73, estabelece as condições mínimas e inafastáveis para que haja revelação do sigilo médico, percebam:
“Art. 73: É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.”
Por motivo justo, entende-se, por exemplo, razão superior relevante, ou um estado de necessidade. Por motivo justo, “admite-se um interesse de ordem moral ou social que justifique o não cumprimento da norma [do sigilo médico]”, complementa Genival Veloso de França. Por sua vez, dever legal é a disposição normativa expressa, exemplo: doenças de notificação compulsória (o que inclui doenças ocupacionais, art. 169 CLT), comunicação de crime de ação pública (arma de fogo, lesão corporal grave), maus-tratos a crianças e idosos, entre outros.
Daí vem a pergunta-chave para o desenvolvimento desse texto: a fiscalização do trabalho é uma pauta de interesse coletivo ou individual? Não há dúvidas de que, nessa matéria, o interesse coletivo se sobrepõe em muito o interesse individual. Sendo assim, entendo particularmente que trata-se de razão superior relevante, de elevado interesse social, o que, em última instância indica que, em prol desse motivo justo, sendo necessário, o médico deve sim abrir mão do sigilo profissional.
O interesse social da matéria “fiscalização do trabalho” é tamanho que, aos auditores fiscais do trabalho (AFTs) foram dadas várias prerrogativas fiscalizatórias e até punitivas, como veremos a seguir.
Transcrevo abaixo algumas normas que citam expressamente as prerrogativas dos auditores fiscais do trabalho. Começo com a Convenção n. 81 da OIT (ratificada pelo Brasil em 25 de abril de 1957, com manutenção da ratificação dada em 11 de dezembro de 1987). Antes, lembro-os que uma Convenção da OIT ratificada pelo Brasil tem o mesmo valor jurídico do próprio texto constitucional, conforme estabelece a CF/88 no art. 5, LXXVIII. § 3º.
Conforme o art. 12 da Convenção n. 81 da OIT, “os inspetores de trabalho munidos de credenciais serão autorizados:
a) a penetrar livremente e sem aviso prévio, a qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer estabelecimento submetido à inspeção;
b) a penetrar durante o dia em todos os locais que eles possam ter motivo razoável para supor estarem sujeitos ao controle de inspeção;
c) a proceder a todos os exames, controles e inquéritos julgados necessários para assegurar que as disposições legais são efetivamente observadas e notadamente:
(…)
II) a pedir vistas de todos os livros, registros e documentos prescritos pela legislação relativa às condições de trabalho, com o fim de verificar sua conformidade com os dispositivos legais, de copiar e extrair dados.”
Na mesma esteira, vem a Lei 10.593/2002:
“Art. 11. Os ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho (AFT) têm por atribuições assegurar, em todo o território nacional:
(…)
VI – a lavratura de auto de apreensão e guarda de documentos, materiais, livros e assemelhados, para verificação da existência de fraude e irregularidades, bem como o exame da contabilidade das empresas, não se lhes aplicando o disposto nos arts. 17 e 18 do Código Comercial.”
O Decreto 4.552/2002, também sentencia:
“Art. 18. Compete aos Auditores-Fiscais do Trabalho, em todo o território nacional:
(…)
IV – expedir notificação para apresentação de documentos;
V – examinar e extrair dados e cópias de livros, arquivos e outros documentos, que entenda necessários ao exercício de suas atribuições legais, inclusive quando mantidos em meio magnético ou eletrônico;
VII – apreender, mediante termo, materiais, livros, papéis, arquivos e documentos, inclusive quando mantidos em meio magnético ou eletrônico, que constituam prova material de infração, ou, ainda, para exame ou instrução de processos;
(…)
XIII – propor a interdição de estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou o embargo de obra, total ou parcial, quando constatar situação de grave e iminente risco à saúde ou à integridade física do trabalhador, por meio de emissão de laudo técnico que indique a situação de risco verificada e especifique as medidas corretivas que deverão ser adotadas pelas pessoas sujeitas à inspeção do trabalho, comunicando o fato de imediato à autoridade competente;
XIV – analisar e investigar as causas dos acidentes do trabalho e das doenças ocupacionais, bem como as situações com potencial para gerar tais eventos;
(…)
XVI – solicitar, quando necessário ao desempenho de suas funções, o auxílio da autoridade policial.”
De forma didática e coerente com os textos acima, Rafaela Pereira Morais assim descreveu os poderes de “livre acesso” e de “investigação” dados legalmente aos auditores fiscais do trabalho:
“- Poder de livre acesso
Efetiva a inspeção do trabalho, vez que, a inspeção por si, sem o poder de visita seria uma atividade meramente burocrática. À época da ratificação da Convenção 81 da OIT pelo Brasil, muito se discutiu sobre o eventual desrespeito à propriedade privada. Hoje em dia essa discussão está superada uma vez que se leva em conta o interesse coletivo, a fé pública e o dever de sigilo da autoridade fiscalizadora. Somente no caso de comprovada necessidade, não poderia o agente fiscal adentrar nas dependências da empresa posto ser o ato administrativo vinculado e não discricionário.
– Poder de investigação
Completa o poder de livre acesso. Está relacionado ao acesso que o inspetor do trabalho tem aos documentos da empresa e suas instalações. A inspeção do trabalho está vinculada não à verdade formal, mas à verdade real, que revela-se pela busca dos fatos. O inspetor do trabalho pode inspecionar os trabalhadores e empregadores, pode inspecionar o local da prestação de serviço, podendo buscar toda informação que o ajudará em seu convencimento que, dentro de seu critério de conveniência e oportunidade, irão guia-lo no sentido impor obrigações, sanções ou mesmo dar conselhos para o fiel cumprimento das normas legais.”
Por toda fundamentação exposta neste texto, interpreto facilmente que, em prol de um bem coletivo maior, o auditor fiscal do trabalho (independente de sua formação/graduação) pode sim solicitar e ter acesso a toda documentação que se fizer necessária para o bom cumprimento de seu labor, o que, ao meu entender, inclui os prontuários médicos dos trabalhadores.
Alguém perguntará: “mas e o sigilo médico?”. O sigilo é profissional. Da profissão médica exige-se o sigilo profissional nos termos do já aludido art. 73 do Código de Ética Médica. Analogamente, da profissão dos auditores fiscais do trabalho também se exige o sigilo profissional, conforme o art. 15 da Convenção n. 81 da OIT (que ratifico, tem o mesmo valor jurídico do próprio texto constitucional, nos termos do art. 5, LXXVIII. § 3º da CF/88). Vejamos:
“Art. 15. Ressalvadas as exceções que a legislação nacional possa prever, os inspetores de trabalho:
(…)
b) serão obrigados, sob sanção penal ou de medidas disciplinares apropriadas, a não revelar, mesmo depois de terem deixado o serviço, os segredos de fabricação ou de comércio ou os processos de exploração de que possam ter conhecimento no exercício de suas funções;
c) deverão tomar como absolutamente confidencial a fonte de queixas que lhes tragam ao conhecimento um defeito de instalação ou uma infração às disposições legais e deverão abster-se de revelar ao empregador ou a seu representante que sua visita de inspeção resultou de alguma queixa.”
No mesmo caminho vem o Decreto 4.552/2002:
“Art. 35. É vedado aos Auditores-Fiscais do Trabalho e aos Agentes de Higiene e Segurança do Trabalho:
I – revelar, sob pena de responsabilidade, mesmo na hipótese de afastamento do cargo, os segredos de fabricação ou comércio, bem como os processos de exploração de que tenham tido conhecimento no exercício de suas funções;
II – revelar informações obtidas em decorrência do exercício das suas competências;
Parágrafo único. Os Auditores Fiscais do Trabalho e os Agentes de Higiene e Segurança do Trabalho responderão civil, penal e administrativamente pela infração ao disposto neste artigo.”
Há pouco tempo me posicionei de forma favorável ao Parecer CFM n. 03/2017, entendendo que, quando o prontuário médico transita entre profissionais que compartilham do mesmo dever do sigilo profissional (sendo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente), não se configura uma conduta antiética quando o médico responsável pela guarda do prontuário permite esse trânsito. Da mesma forma entendo quanto ao fornecimento do prontuário médico aos auditores fiscais do trabalho (independente da formação/graduação dos AFTs), quando estes o exigirem conforme prerrogativas legais que possuem. E relembro: tanto dos médicos, quanto dos auditores fiscais do trabalho, exige-se a obrigação do sigilo profissional estabelecida em lei.
Pela interpretação que faço de todas as normativas supracitadas, entendo que o fornecimento do prontuário médico ao auditor fiscal do trabalho (quando este o requisita), deve se estabelecer por um motivo justo que visa, em última instância, um bem coletivo maior (segurança e saúde dos trabalhadores, muitas vezes incluindo a segurança e saúde do próprio trabalhador dono do prontuário!). Esse bem coletivo maior, de razão superior relevante, em muito se sobrepõe a um bem individual (aqui me referindo à garantia da intimidade).
Vale lembrar que, caso o médico desobedeça a requisição feita pelo AFT, mesmo que este profissional médico esteja imbuído da melhor e mais nobre das intenções (preservar a intimidade do trabalhador), o auditor fiscal do trabalho poderá, em casos extremos, requerer o auxílio da autoridade policial para o desempenho de suas funções, conforme estabelece o art. 18, XVI, do Decreto 4.552/2002.
Assim, com imenso respeito, ouso discordar do Despacho CFM n. 283/2014, que atesta em sua ementa:
“Diante das reiteradas manifestações do Conselho Federal de Medicina sobre sigilo médico, entendemos que viola o sigilo médico a requisição de documentos médicos por auditor fiscal do trabalho não médico.”
O referido despacho me parece equivocado em dois aspectos: (a) não considera a revelação do sigilo médico quando solicitado pelos AFTs como sendo de um “motivo justo”; (b) parte do princípio que somente os médicos estão sujeitos ao sigilo profissional, o que não é verdade. Os auditores fiscais do trabalho (independente de suas formações/graduações acadêmicas), além de possuírem a prerrogativa legal para a exigência de todas as documentações relacionadas à SST (Saúde e Segurança no Trabalho), também estão, conforme farta legislação citada, obrigados ao mesmo sigilo profissional.
Conclusão: por toda fundamentação narrada, repouso meu entendimento no sentido de que os auditores fiscais do trabalho (AFTs), sendo médicos ou não, desde que no estrito exercício de suas funções, podem sim exigir e ter acesso aos prontuários médicos dos trabalhadores.
É o que penso hoje, com sincero respeito aos que discordam.
À vontade para os embasados comentários (alinhados ou contraditórios).
Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assesoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Editor do “Reflexões do Mendanha”, no site www.saudeocupacional.org. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.