Prezados leitores.
Aventuro-me a fazer alguns comentários sobre o polêmico Parecer CFM n. 03/2017, que afirma em sua ementa:
“O médico do trabalho não está impedido de fundamentar a contestação ao nexo técnico epidemiológico (NTEP) com critérios científicos e dados do prontuário do trabalhador especificamente atinente ao caso”.
Como o tema é polêmico por excelência, é natural que contra o respectivo parecer surjam duras críticas e também sonoros elogios. É nesse terreno que me sinto também à vontade para resumir minhas atuais convicções. Digo atuais pois não tenho compromisso com a inalterabilidade de minhas teses. Havendo argumentos que me convençam de algum equívoco, não relutarei em modifica-las.
SITUAÇÕES QUE JUSTIFICAM A QUEBRA DO SIGILO
Me parece que o ponto nevrálgico dessa discussão é a questão do sigilo profissional. Uns entendem que o médico não pode usar dados do prontuário para contestar o NTEP em nome da empresa, uma vez que isso quebraria o sigilo médico. Outros, entendem que, no caso específico da contestação do NTEP, há um motivo justo para a quebra desse sigilo conforme se aduz do texto de conclusão do próprio Parecer CFM n. 03/2017.
Surge a primeira pergunta: independente do caso, existe mesmo motivo justo para quebra do sigilo médico? A resposta é sim, como nos ensina o art. 73 do próprio Código de Ética Médica, que assim coloca:
“É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.”
Pelo texto, diante de um motivo justo (entendido como razão superior relevante ou estado de necessidade) ou dever legal (disposição legal expressa nesse sentido), o sigilo pode, e, por vezes, deve ser quebrado! Isso ocorre, via de regra, toda vez que o interesse coletivo se sobrepõe ao interesse individual da garantia da intimidade. Um bom exemplo disso, apesar de não envolver o médico, é o “sopro do bafômetro”. Faz parte da intimidade de cada um beber ou não beber. Mas a partir do momento que eu bebo e dirijo, a questão sai da esfera individual e atinge a coletividade. O risco agora não é só meu, mas de todos. Daí o rigor da lei em permitir e exigir que minha intimidade seja quebrada em virtude de um bem coletivo maior: a segurança no trânsito.
Já envolvendo o médico, o Código Penal, em seu art. 269, qualifica como crime o fato do médico não comunicar a autoridade pública sobre as doenças de notificação compulsória. Percebam: o interesse coletivo pela notificação de determinadas doenças se sobrepõe a garantia individual do sigilo médico, daí o mandamento para que este seja quebrado. Assim, nos ensinou Genival Veloso de França:
“Constitui-se hoje o sigilo médico um instrumento social em favor do bem comum e da ordem pública. Sendo assim a sua revelação, em situações mais que justificadas, não pode configurar-se como infração ética ou legal, principalmente quando visa proteger um interesse contrário superior e mais importante.”
Na mesma esteira, cumpre-me lembrar que as doenças ocupacionais (ou doenças relacionadas ao trabalho) são consideradas doenças de notificação compulsória, nos termos do art. 169 da CLT. Tal notificação deve ser realizada pela CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho).
NTEP
Com o intuito, entre outros, de diminuir a sabida subnotificação de doenças ocupacionais pela via das CATs emitidas pelas empresas, entrou em vigor em 2007 o chamado NTEP (Nexo Técnico Epidemiológico). Por ele, há a presunção da natureza acidentária da doença toda vez que houver correlação epidemiológica entre o CID da respectiva doença e o CNAE da empresa. Por ser fundada apenas na análise estatística, várias inconsistências médicas de nexos de (con)causalidade entre doença e trabalho já foram observadas no NTEP. Justamente por isso, a empresa pode requerer a sua não aplicação de forma fundamentada, nos termos do art. 337 do Decreto 3048/1999. Importante: esse requerimento será analisado pelo serviço de perícias médicas do INSS, conforme art. 7 da Instrução Normativa INSS n. 31/2008.
PROVOCAÇÕES
Com tudo isto posto, reflitamos: se há o dever legal da quebra de sigilo para notificar doenças ocupacionais, não é igualmente justo a quebra de sigilo para desqualificar o NTEP atribuído de forma equivocada nos termos da literatura médica? Negar isso não seria uma afronta ao “Princípio do Contraditório”, assegurado também à empresa com fulcro no art. 5, inciso LV, da Constituição Federal de 1988?
Minhas respostas (sempre passivas de críticas e discordâncias): sim e sim. O dever legal do médico em quebrar o sigilo no caso de notificação de doenças ocupacionais justifica-se pelo bem coletivo de preservação da saúde dos próprios trabalhadores. Só com essa revelação é que medidas apropriadas pelas autoridades competentes poderão ser tomadas, e corretamente tomadas.
Por outro lado, a manutenção equivocada de nexos entre doença e trabalho também gera consequências sociais nada bem-vindas, sobretudo nos dias atuais. Por exemplo: a majoração injusta do FAP, que repercutirá numa maior tributação para a empresa. Num país com mais de 12 milhões de desempregados, qualquer ônus indevido ao setor produtivo não pode ser desprezado, sob pena de sermos coniventes e contribuirmos ainda mais com o aumento do número de desempregados. Não é à toa que a própria Justiça do Trabalho (“muito paternalista”, como dizem) tem se valido, com cada vez mais frequência, do chamado “Princípio da Preservação da Empresa” em suas decisões. Tal princípio visa ofertar segurança jurídica ao empregador, preservando-lhe o negócio, até como fonte de geração de empregos.
Na mesma linha, usando do consagrado “Princípio do Contraditório”, não me parece justo, mesmo em um processo administrativo – como é o do INSS, que a mesma empresa que é obrigada a usar da quebra de sigilo para notificar doenças ocupacionais não possa usar do mesmo instituto para negar o nexo indevidamente lhe atribuído entre doença e trabalho.
Outro fato que, no meu entender, corrobora com a tese de que o médico do trabalho não está impedido de fundamentar a contestação ao NTEP com dados do prontuário do trabalhador: quem avalia o requerimento de contestação do NTEP? O médico perito do INSS, que está igualmente sujeito ao sigilo médico. Nunca foi motivo de polêmica, por exemplo, a Resolução CFM n. 1658/2002, que assim colocou em seu artigo 3, parágrafo único:
“Quando o atestado for solicitado pelo paciente ou seu representante legal para fins de perícia médica deverá observar:
I – o diagnóstico;
II – os resultados dos exames complementares;
III – a conduta terapêutica;
IV – o prognóstico;
V – as conseqüências à saúde do paciente;
VI – o provável tempo de repouso estimado necessário para a sua recuperação, que complementará o parecer fundamentado do médico perito, a quem cabe legalmente a decisão do benefício previdenciário, tais como: aposentadoria, invalidez definitiva, readaptação.”
Percebam: apesar da solicitação ser feita pelo próprio paciente, o CFM sequer condiciona a quebra de sigilo com a ausência de autorização escrita do paciente, quando o objetivo é a avaliação pericial. Ao contrário, a respectiva resolução obriga o médico a não manter sigilo na comunicação com o serviço médico pericial do INSS. Lembremos: o requerimento de contestação do NTEP é direcionado ao médico perito. Usando da “mesma régua” da Resolução CFM n. 1658/2002, não há justificativa ética para impedir que o médico do trabalho use de dados sigilosos para confeccionar tal requerimento e se comunicar com o médico perito do INSS.
ANALOGIA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO COM O PROCESSO JUDICIAL
Interessante! Há muito tempo que médicos do trabalho vêm atuando na contestação do NTEP, e sem nenhuma polêmica. Trata-se de uma função análoga a função de assistente técnico judicial.
Se no processo judicial, cujo rigor é maior e legalmente previsto pelo Código de Processo Civil (CPC), o assistente técnico é de confiança da parte, não estando sujeito a impedimento ou suspeição, no processo administrativo presume-se que a regra seja similar. Sendo assim, por uma interpretação análoga, não é antiético e nem ilegal que o médico do trabalho assista a empresa em casos de contestação do NTEP. Ainda na trilha da analogia com perícia judicial, vale lembrar que o art. 473 do novo CPC garante acesso a todos os documentos necessários para instrução pericial, tanto para o perito judicial, quanto para o assistente técnico, o que inclui, no meu entender, o próprio prontuário. Se a regra vale para o processo judicial, entendo que valha para o processo administrativo também, uma vez que o “Princípio do Contraditório” também é imperativos aos processos administrativos.
ILEGAL NÃO É. ANTIÉTICO NÃO É. MAS É RECOMENDÁVEL?
Pelo exposto, na mesma linha do Parecer CFM n. 03/2017, não considero ilegal e nem antiético o uso dos dados do prontuário do trabalhador na contestação do NTEP.
Aliás, senhores, sejamos francos: ainda que de forma indireta e não expressa, é muito improvável que boa parte das contestações de NTEP que vem sendo feita há anos por médicos do trabalho não estejam usando, em algum grau, de alguma informação contida no prontuário do trabalhador em análise. Mesmo não olhando diretamente para o prontuário, não há como o próprio médico do trabalho deletar de sua memória conhecimentos obtidos em exames ocupacionais.
Mas a despeito disso, mesmo não considerando ilegal e nem antiético tal prática, sou enfático em dizer que ela não é recomendável. E nisso, precisamos fazer justiça com o Parecer CFM n. 03/2017, até para diminuirmos tanta polêmica: em sua ementa, ele não obrigou e nem recomendou nenhum médico do trabalho a usar o prontuário como referência na contestação do NTEP. Apenas desqualificou como antiética tal prática.
Na conclusão do parecer sim, talvez por um deslize de redação, me parece ter havido um equívoco quando o documento afirma que “se o médico do trabalho detém os elementos para contestar o nexo estabelecido epidemiologicamente entre doença e trabalho pela perícia médica do INSS, deverá fazê-lo com critérios científicos e dados do prontuário“. Acredito que a palavra “deverá” deveria ser substituída por “poderá”, referindo-se especialmente ao uso dos dados do prontuário.
Por que não acho a prática do uso dos dados do prontuário na contestação do NTEP recomendável? Pelo simples fato de poder macular a confiança dos trabalhadores em relação ao médico do trabalho. Com a mesma compreensão que tenho da assistência técnica judicial, sugiro: apesar de não ser ilegal e nem antiético, assim como o ideal é que o médico do trabalho não seja assistente técnico da própria empresa, o ideal é que também não use dados dos prontuários para contestar o NTEP. Se houver possibilidade de atingir o objetivo dessa contestação sem o uso dos dados do prontuário do trabalhador, que seja assim sempre!
Se a empresa, por sua vez, quiser contratar outro médico – que não realiza exames ocupacionais – para esse exclusivo ofício (de contestar NTEPs), que o faça. Mas sugiro com veemência que o médico do trabalho evite contestar o NTEP usando dados dos prontuários.
Se ainda assim for inevitável, sublinho a necessidade inafastável de que a contestação do NTEP, que use dados do prontuário, seja entregue, se possível “em mãos”: do médico do trabalho diretamente para o médico perito do INSS. Que essas informações transitem apenas entre médicos, que partilham do mesmo sigilo profissional.
Nesse momento, com todo respeito aos discordantes e pelos fundamentos expostos, é o que penso.
À vontade para os bons e embasados contraditórios.
Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assesoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Editor do “Reflexões do Mendanha”, no site www.saudeocupacional.org. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações.