Quando estudamos a Lei n. 8.213/1991, no que tange à concessão do auxílio-doença, ela assim nos traz em seu art. 59:
“O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.”
Pelo texto, fica claro que o Médico Perito do INSS avalia a incapacidade. Mais do que isso, essa incapacidade é avaliada levando-se em conta o trabalho ou a atividade habitual do trabalhador, o que, conforme nosso entendimento, também equivale à função específica que o trabalhador exerce.
Por que acreditar que o Médico Perito do INSS avalia a função específica do trabalhador (e não apenas a capacidade de trabalho para qualquer outra função)? Pois vemos, na prática profissional, várias situações nas quais haveria possibilidade de o segurado estar trabalhando em outra função, diferente de sua função habitual, mas ainda assim esse trabalhador obtém o benefício auxílio-doença. Entendemos como justíssimo!
Da mesma forma, é atividade já sacramentada do Médico do Trabalho/“Médico Examinador” avaliar aptidão ou inaptidão à função específica do trabalhador. Vejamos o que diz a Norma Regulamentadora n. 7 (NR-7), em seu item 7.4.4.3, alínea e:
“O ASO (Atestado de Saúde Ocupacional) deverá conter no mínimo: definição de apto ou inapto para a função específica que o trabalhador vai exercer, exerce ou exerceu.”
Pelo exposto, será que podemos concluir que “incapaz ao trabalho” (qualificação dada pelo Médico Perito do INSS) equivale a “inapto ao trabalho” (qualificação dada pelo Médico do Trabalho/“Médico Examinador”)? Ora, considerando que o Médico Perito do INSS e o Médico do Trabalho/“Médico Examinador” levem em conta a mesma coisa, ou seja, a função específica do trabalhador (conforme fundamentação acima), concluímos que: estar “incapaz ao trabalho” deve ser tratado como equivalente a estar “inapto ao trabalho” (e, por analogia, estar “capaz ao trabalho” deve ser tratado como equivalente a estar “apto ao trabalho”).
Sabemos que muitos médicos não pensam assim, opiniões que respeitamos. Essa divergência é compreensível: o Médico Perito do INSS está sujeito às legislações previdenciárias (Lei n. 8.213/1991 e outras), enquanto o Médico do Trabalho/“Médico Examinador” está sujeito às legislações trabalhistas (CLT, NR-7, e outras). As legislações previdenciárias e trabalhistas podem, em alguns temas, não estar em fina sintonia. Essa falta de uniformidade das normas é um terreno fértil para toda sorte de interpretações diferenciadas e inúmeros conflitos, o que é lamentável, especialmente pelo fato de ser o trabalhador o maior prejudicado por esses desentendimentos.
O Decreto n. 7.602/2011 regulamentou (pelo menos na teoria) a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho, que prevê, entre outras coisas, a uniformização das normas emitidas pelos Ministérios da Previdência Social, da Saúde, e do Trabalho e Emprego. Louvável! No entanto, enquanto essa sincronia de normas não for uma realidade, propomos uma visão uniformizada das legislações, sobretudo previdenciárias e trabalhistas. Por quê? Acima de tudo, por uma questão de maior segurança jurídica para todos os interessados nesse tema, ou seja: trabalhador, empregador, Médico Perito do INSS e Médico do Trabalho/“Médico Examinador”.
É muito frequente (e angustiante) o conflito de decisões entre o Médico Perito do INSS e o Médico do Trabalho/“Médico Examinador”. Na vigência desses conflitos, por uma questão legal, entendemos que deva prevalecer a decisão do Médico Perito do INSS, pelos motivos expostos fartamente em outras publicações desse site. Dessa forma, sendo o trabalhador considerado “capaz” pelo Médico Perito do INSS, ele também será considerado “apto” pelo Médico do Trabalho/“Médico Examinador”. No entanto, ao nosso entendimento, essa aptidão poderá ser qualificada, no ASO de 3 formas: (a) “Apto”; (b) “Apto com recomendações”; (c) “Apto com contraindicação à função”.
Alguns devem estar pensando: “a NR-7 só permite colocar apto ou inapto no ASO”. Não é verdade! Ela assim nos traz no item 7.4.4.3, alínea “e”: “o ASO (Atestado de Saúde Ocupacional) deverá conter no mínimo: definição de apto ou inapto para a função específica que o trabalhador vai exercer, exerce ou exerceu”. O termo “no mínimo” não deixa dúvidas quanto à possibilidade de haver mais qualificações no ASO, além dos simples “apto” ou “inapto”.
Mais do que isso, o termo “apto com restrições” (que preferimos nomear como “apto com recomendações”) encontra-se respaldado na SCMA (Sugestão de Conduta Médica-Administrativa) da ANAMT (Associação Nacional de Medicina do Trabalho) n. 6/2001. Já o termo “contraindicado para a função” tem seu uso ratificado pela SCMA da ANAMT n. 5/2000. Com essas duas outras possibilidades (além dos já tradicionais “apto” e “inapto”), o Médico do Trabalho/“Médico Examinador” consegue unir em suas condutas: evidente zelo pela saúde do trabalhador, e prevenção de doenças/acidentes (o que é mais importante). Tudo isso, com embasamento legal, normativo, técnico e ético.
Vejamos um caso concreto:
TRECHOS DA SENTENÇA: “O perito analisou os exames juntados aos autos e concluiu que o autor apresenta alterações na coluna vertebral, articulação sacro-ilíaca e joelhos que limitam sua capacidade de esforço físico, fazendo com que despenda um esforço maior para a realização das tarefas, não sendo incapaz de exercer as tarefas para o posto que pleiteia, mas com um esforço muito maior para realizá-las, além de, provavelmente, sentir dor. (…) Entende-se que a patologia degenerativa na coluna manifestada no autor (exame de fls. 207/208), embora não o torne inapto para o trabalho, nos termos do item 1 do edital, é incompatível com as atribuições do cargo que seria ocupado, pois com o esforço físico despendido, haveria um comprometimento de sua saúde, com a evolução do processo degenerativo”. (AIRR n. 106700-16.2009.5.04.0012)
Observamos que o perito do caso narrado entendeu que o trabalhador encontrava-se “apto com contraindicação à função”. Coadunamos. Explorando ainda mais o exemplo dado, entendemos que esse trabalhador também poderia ter sido qualificado como “apto com recomendações”, dependendo das particularidades das atividades que seriam exercidas. Reconhecemos que, sendo num exame admissional, a qualificação como “inapto” não costuma gerar maior transtorno (embora tenha gerado no processo acima, em que o autor questionou judicialmente uma possível atitude discriminatória da contratante). No entanto, sendo qualquer outro exame (periódico, demissional etc.), a qualificação como “inapto” repercutiria num encaminhamento ao serviço de perícias do INSS, que dificilmente concederia a esse obreiro algum benefício.
Alguém insistirá: “a qualificação de ‘apto com contraindicação à função’ não equivale a ‘inapto para a função’?” De fato estamos falando de uma linha muito tênue de separação. Mas há diferença. Pelo que defendemos, a conduta sequencial determinada para um empregado que seja qualificado como “inapto para a função” pelo Médico do Trabalho/“Médico Examinador”, em regra, é o encaminhamento desse trabalhador ao serviço de perícias do INSS, que também (esperamos) o considerará “incapaz”, e lhe dará o devido benefício previdenciário (cumpridas as exigências administrativas), algo que não ocorreria com o segurado “apto com contraindicação à função”, que não faria jus ao tal benefício. Oportuno perguntar, para nossa reflexão: é correto (moralmente, tecnicamente e eticamente) o Médico do Trabalho/“Médico Examinador” encaminhar um trabalhador ao INSS, mesmo quando em sua própria análise ele considera esse trabalhador com capacidade laboral definida? Entendemos que não.
Assim, caso um empregado não tenha critérios de incapacidade verificada (seja pelo Perito do INSS, seja pelo próprio Médico do Trabalho/“Médico Examinador”), mas não seja recomendável que ele exerça determinada função em virtude de seu quadro clínico, aí sim caberá o “apto com contraindicação à função” (ou até mesmo um “apto com recomendações”, dependendo do caso). Nesse particular, em decisão conjunta com os gestores da empresa, ao empregado será oferecida uma das alternativas abaixo:
a) ou exercer (temporariamente ou definitivamente) uma nova função que não coloque em risco, nem o empregado, nem terceiros (o que nesse caso não se confunde com o tão propagado “desvio de função”, uma vez que o que se busca é preservar a integridade do empregado e de terceiros, e não apenas o pagamento de salários diferenciados). Nessa situação, dependendo da nova função, as qualificações possíveis a serem dadas para esse trabalhador pelo Médico do Trabalho/“Médico Examinador”, quando do exame de mudança de função, são: ou apenas “apto”; ou então “apto com recomendações”(quando as recomendações/restrições devem estar elencadas no prontuário médico e no próprio ASO).
b) ou ficar sem trabalhar, com salários pagos pela própria empresa (falta justificada nos termos do art. 131, inciso IV, da CLT) enquanto não haja uma completa convalescença de seu quadro conforme critério clínico estabelecido pelo Médico do Trabalho/“Médico Examinador” (e/ou enquanto se aguarda novo posicionamento do INSS ou da Justiça: pedido de reconsideração, recurso, alguma outra perícia, liminar, sentença etc.). Alguém dirá: “isso não seria um assédio moral?” De fato há o risco dessa qualificação, isso é inegável. No entanto, ao empregador não está sendo dada a opção de escolher entre “o bom e o excelente”, mas entre “o ruim e o péssimo”. Acreditamos que seria ruim o questionamento de um possível assédio moral, mas que seria péssimo deixar que o trabalhador exerça suas atividades na única função em que seria possível acolhê-lo, e posteriormente a empresa ser acusada de negligência pelo eventual agravamento da doença/acidente com esse obreiro. É simples e dramático: nesses casos, o empregador deverá fazer a opção de a qual risco jurídico irá ter que se submeter. Sobre essa difícil escolha, sugerimos a avaliação do que nomeamos nesse site como “Fluxograma de Mendanha”, basta colocar esse nome no campo de pesquisa.
c) ou ser dispensado do emprego sem justa causa, conforme ensinamento do julgado abaixo:
“INCERTEZA QUANTO À APTIDÃO DO RECLAMANTE PARA O TRABALHO. AFASTAMENTO. SALÁRIOS. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL. Se o empregador discorda da decisão do INSS que considerou seu empregado apto para o trabalho deve impugná-la de algum modo, ou, até mesmo, romper o vínculo, jamais deixar o seu contrato de trabalho no limbo, sem definição. Como, no caso em exame, a reclamada somente veio a despedir o reclamante um ano e nove meses após, incorreu em culpa, ensejando o pagamento de indenização por danos morais, bem assim dos salários devidos no respectivo período. Isso porque nos casos em que o empregado não apresenta aptidão para o trabalho e o INSS se recusa a conceder-lhe o benefício previdenciário, incidem os princípios da função social da empresa e do contrato, da solidariedade social e da justiça social, que asseguram o pagamento dos salários, ainda que não tenha havido prestação de serviço.” (AIRR n. 565-04.2010.5.05.0016)
No entanto, recomendamos que um eventual desligamento do trabalhador seja feito apenas como última opção, e também após análise criteriosa da equação risco/benefício jurídico, que inclui:
• gozo — ou não — de estabilidade provisória no emprego por esse trabalhador (por exemplo: se, em virtude de acidente de trabalho/doença relacionada ao trabalho, esse empregado tiver recebido auxílio-doença acidentário, fará então jus a uma estabilidade no emprego pelo período mínimo de 12 meses, contados a partir do término do benefício, nos termos do art. 118 da Lei n. 8.213/1991);
• ofensa — ou não — ao aludido e constitucional princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988), tema melhor explorado no tópico 2.12 deste livro (“Doença não ocupacional gera estabilidade no emprego?”).
• risco — ou não — de manutenção desse empregado na empresa, independente da função que voltará a ocupar. Por vezes, a própria manutenção desse trabalhador na empresa também poderá ofender ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que o expõe a riscos inerentes à própria atividade laboral, mesmo que adequada ao quadro clínico desse empregado. Por exemplo: uma empresa presta serviços de “trabalho em altura”. Essa empresa só contrata trabalhadores para atuar nessa função. Após 5 anos de contrato, um dos empregados contratados recebe diagnóstico de uma síndrome epiléptica. Com tratamento adequado (resposta eficaz), esse trabalhador está apto ao trabalho, de forma irrestrita. Mas é aconselhável que ele se mantenha trabalhando em altura mesmo estando apto para isso, na vigência de um tratamento eficaz (lembrando que uma negligência no tratamento poderá desencadear crises convulsivas)? É apto… mas convém? Caso houvesse alguma fatalidade, de quem seria a culpa? E se a empresa dispensar esse trabalhador, poderia se configurar uma atitude discriminatória (nos termos da Súmula n. 443 do TST, editada em setembro de 2012)? Ratificamos: nesses casos, o empregador deverá fazer a opção de qual risco jurídico irá ter que se submeter, uma vez que “risco zero” (segurança jurídica plena) não há.
• presença — ou não — de outra função mais segura e inócua, para que se possa realocar esse empregado;
• etc.
No caso de o empregado ser qualificado como “apto com contraindicação à função”, ou “apto com recomendações”, dependendo do caso, defendemos a ideia de que o empregador (ou responsáveis diretos pelo trabalhador) saiba do quadro clínico desse funcionário, na parte que o interessa. Alguém dirá: “isso configura infração ética gravíssima, pois trata-se de quebra de sigilo médico-profissional”. Ousamos discordar. O próprio Código de Ética Médica assim coloca em seu art. 76:
“É vedado ao médico revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade.”
Entendemos que, se o quadro clínico não for compatível com determinada função, e ao mesmo tempo o Perito do INSS (ou o Médico do Trabalho/“Médico Examinador”) não tiver visto critérios de incapacidade (inaptidão), há casos em que deixar de revelar os motivos dessa contraindicação e/ou recomendações ao empregador se configura como uma omissão (e não infração ética). Sim! O silêncio, dependendo do caso, poderá colocar em risco a saúde do(s) próprio(s) empregado(s).
Ressaltamos, porém, que, apesar da relativa segurança em seu aspecto jurídico, a conduta que ora propomos exige do Médico do Trabalho/“Médico Examinador” um novo e contínuo trabalho de educação e diálogo junto ao empregador e ao empregado, uma vez que não se trata de uma conduta costumeira. Todos os atores envolvidos devem estar cientes dos motivos de cada qualificação dada pelo Médico do Trabalho/“Médico Examinador”.
No entanto, uma vez incorporado esse modelo de gestão médica, a atividade do Médico do Trabalho/“Médico Examinador” se torna mais transparente, confiável, coerente (critérios idênticos para exames admissional, periódico, demissional etc.), juridicamente mais embasada, e com menos “achismos”. Por sua vez, o empregado passa a entender, por exemplo, que estar, ao mesmo tempo, apto e contraindicado para determinada função é perfeitamente possível, de acordo com a (muitas vezes cruel) legislação vigente. Já o empregador passa a assumir o seu poder potestativo — estabelecido constitucionalmente — e entender que, por exemplo, quando o empregado está, simultaneamente, apto e contraindicado para determinada função, cabe ao empregador decidir e assumir todos os riscos dessa decisão, por exemplo, não contratando o empregado (ou até mesmo dispensando-o), caso assim o deseje (em vez de obrigar ao Médico do Trabalho/“Médico Examinador” ter de qualificar esse trabalhador como “inapto”, de forma errada, para justificar a dispensa deste pela empresa).
Vale lembrar que ao qualificar um trabalhador como “inapto” sem que haja critérios clínicos para isso, e encaminhá-lo ao INSS, o Médico do Trabalho/“Médico Examinador” correrá o risco de ser o autor de uma longa e trágica novela, e ter de ver esse empregado (parte mais frágil de toda história) voltando ao seu consultório com o benefício acertadamente indeferido pelo Perito do INSS inúmeras vezes (limbo trabalhista-previdenciário).
Difícil o Médico do Trabalho/“Médico Examinador” sair de seu consultório e ser um propagador de novos conceitos e soluções, gerenciando melhor os conflitos? Dificílimo! Mas acreditamos que seja desse profissional que o mercado esteja carente.
Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Editor do “Reflexões do Mendanha”, no site www.saudeocupacional.org. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.