Para minha indignação, mas não surpresa, me deparo com recomendação do MPT, Recomendação 65440/17, onde o parquet recomenda a revogação do Parecer 3/17 do CFM.
E o que diz tal parecer do CFM? Qual o motivo de minha indignação?
Trata-se de uma consulta realizada por uma médica do trabalho que questiona a possibilidade de utilização dos dados do prontuário medico ocupacional para contestação do NTEP. Em resposta a esta consulta, conclui o CFM:
“Com fundamento no Decreto 6042/2007 e baseado em motivo justo, se o médico do trabalho detém os elementos para contestar o nexo estabelecido epidemiologicamente entre doença e trabalho pela perícia médica do INSS, deverá fazê-lo com critérios científicos e dados do prontuário, especificamente atinentes ao caso. Como a peça de contestação é dirigida confidencialmente ao medico perito previdenciário, imbuído também com o dever da guarda do sigilo profissional, mantém-se resguardadas a privacidade e a intimidade do paciente.”
Vejamos que em momento algum o CFM recomenda que estes dados sejam divulgados a leigos ou que o indivíduo tenha a sua intimidade e privacidade violada ou exposta. Apenas que um profissional médico pode fornecer a outro médico informações que podem ser vitais na definição do nexo causal entre um agravo de saúde e o trabalho.
Mas a gritaria foi grande, com diversas entidades se colocando contra o parecer do CFM, inclusive tendo o CFM de soltar nota de esclarecimento sobre os aspectos éticos e legais do parecer.
Ora, qual o motivo da indignação dos que se colocam contra a contestação do NTEP através do prontuário medico ocupacional?
Temos que verificar as considerações utilizadas pelo MPT para “recomendar” a revogação do parecer.
Analisando os “considerando” utilizados na recomendação, observamos que os motivos indicados, em linhas gerais, foram:
1. Utiliza-se a questão do sigilo para justificar a não utilização destes dados;
2. Falta de legitimidade do médico do trabalho para contestar o NTEP;
3. Ausência de justa causa para a violação do sigilo;
4. Existe subnotificação de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho no Brasil;
5. As informações do prontuário não afastam a existência de nexo causal/concausal;
6. As empresas brasileiras adoecem seus trabalhadores.
Com a devida vênia, entendo que nenhum destes motivos é justificativa plausível para a revogação do Parecer 03/17 do CFM.
Em relação a questão do sigilo médico, em momento algum no parecer emanado do CFM está sendo recomendado que o médico viole o sigilo do trabalhador, mas apenas que estas informações devem ser repassadas a perícia médica do INSS para que possa analisar a aplicação do NTEP.
O médico perito do INSS não tem que obedecer às normas éticas de sigilo?
A considerar o que está sendo afirmado, os peritos do INSS não poderiam solicitar informações de médicos que assistem os segurados, pois haveria violação do sigilo médico.
Conhecem o SIMA, Solicitação de Informações ao Médico-Assistente, previsto no anexo VI da Instrução Normativa 77 de 2015, seria uma clara violação do sigilo médico.
Isto pode ser aceito? Troca de informações entre médicos deve ser considerada com violação ao sigilo médico?
A resposta nos parece óbvia: não!
Quanto a falta de legitimidade do médico do trabalho para contestar o NTEP, nos parece notório que o médico do trabalho, como funcionário da empresa, está atuando representando a empresa, e não sua pessoa física.
A empresa não é parte legitima para contestar um ato do INSS que lhe trará repercussões diretas?
Quanto a ausência de justa causa, entendo que mais uma vez não assiste razão ao parquet.
Vamos a definição do que vem a ser a justa causa:
“A justa causa exprime, em sentido amplo, toda a razão que possa ser utilizada como justificativa para a prática de um ato excepcional, fundamentado em razões legítimas e de interesse ou procedência coletiva. Assim, entende-se como uma razão superior relevante do que seria, a princípio, uma falta. Como exemplo de justa causa para a revelação do segredo médico, temos o peculiar caso de um candidato ao preenchimento de uma vaga profissional como motorista de transporte coletivo, sendo portador de epilepsia. Nesse caso, o Médico do Trabalho da empresa contratante, respaldando-se na justa causa como preservadora dos direitos individuais das pessoas que se utilizam dos serviços de transporte coletivo desta, ao comprovar a doença, deverá comunicá-la aos seus administradores para que estes tomem a decisão de não contratar o referido candidato.” (http://www.portalmedico.org.br/Regional/crmsc/manual/parte3c.htm)
O médico do trabalho tendo ciência de que existe um fato no prontuário que permite o afastamento do nexo causal configura-se claramente a justa causa, uma vez que a concessão de um beneficio acidentário de forma indevida traz repercussões para a empresa e para toda a sociedade.
Alguém ainda tem em mente que o aumento dos custos operacionais das empresas não são repassados ao consumidor? Isto não interfere no custo final do produto?
O período de carência é igual nas duas situações, Auxilio Doença Acidentário e Auxilio Doença Previdenciário?
A concessão de um beneficio indevido não traz repercussões para toda a sociedade?
Quanto a questão da subnotificação de CAT e as empresas adoecerem trabalhadores, jamais isto pode ser justificativa para que seja concedido um beneficio indevido.
Ou os trabalhadores deixaram de adoecer pelo fato do NTEP ser aplicado?
Vejamos que se isto ocorre no Brasil deve-se a falta de fiscalização e a ineficiência do Estado em fazer cumprir a legislação vigente, sendo que este cenário não mudará pelo fato de se aplicar ou não o NTEP, de se contestar ou não sua aplicação.
A questão das informações do prontuário não afastar o nexo causal/concausal, apesar de ser uma verdade, não é justificativa para o mesmo não ser utilizado na contestação do NTEP.
De fato, uma causa extra-ocupacional não afasta a causa ocupacional da doença, o que não implica em dizer que a perícia médica do INSS não deva considerar todos os dados em sua análise pericial.
Então, sob a justificativa de as doenças serem causadas pelo trabalho iremos omitir informações?
Quem irá analisar a contestação interposta pela empresa não tem condições de analisar isso?
Como fica claro nos pontos acima elencados, não há respaldo legal e ético em se proibir o médico do trabalho de utilizar os dados do prontuário ocupacional para contestação do NTEP, desde que seja preservado o sigilo das informações, ou seja, a troca de informações se dê entre médicos.
É isto que acertadamente diz o parecer do CFM.
Vamos a questões práticas!
Um individuo trabalha na construção civil, sofre entorse de tornozelo no final de semana, é encaminhado para o INSS e seu beneficio é concedido em espécie acidentaria por aplicação do NTEP, no prontuário médico consta que ele caiu no final de semana jogando bola.
Não poderá este documento ser utilizado para contestar o NTEP? A empresa terá condições de contestar o benefício sem o prontuário médico ocupacional com esta informação?
Em qualquer análise que possa realizar, isto não me parece correto.
A aplicação do NTEP sem a possibilidade de contestação do ato administrativo através das informações do prontuário médico ocupacional fere aos princípios do processo administrativo, em especial a razoabilidade, a ampla defesa e o contraditório.
Onde está o devido processo legal?
É a efetivação da punição da empresa pela ineficiência do Estado, uma vez que só existe NTEP pelo fato do Estado não ter condições de implementar o nexo técnico individual, que deveria ser a única forma de estabelecimento de nexo causal.
A presunção de nexo causal através do NTEP, invertendo o ônus da prova, já trouxe as empresas uma tarefa que não caberia a ela, caso o Estado fosse eficiente e cumprisse com sua função.
Agora, não permitir que se conteste o NTEP com base em informações constantes do prontuário médico ocupacional chega a raias do absurdo.
Aqui não estamos preconizando que se deve retirar direito de trabalhadores, de forma alguma, pois se o benefício acidentário for devido, não será a contestação do NTEP pela empresa que irá mudar a sua concessão.
O que é devido deve ser concedido!
Apenas não podemos concordar e ficarmos silentes com a concessão de benefícios previdenciários de forma indevida.
Vamos deixar de lado questões ideológicas!
Caso seja revogado o Parecer 03/17 do CFM haverá prejuízo evidente as empresas.
Perde a empresa, perde toda a sociedade!
Autor (a): Dr. João Baptista Opitz Neto – Médico do Trabalho; Especialista em Ergonomia; Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Mestrando em Bioética pela UMSA / Argentina. Perito Judicial / Assistente Técnico nas áreas trabalhista e previdenciária. Autor do livro “Perícia Médica no Direito” (Editora Rideel).
O Dr. João Baptista Opitz Neto escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Opitz”.