A ANAMT publicou esta semana documento abordando assuntos relacionado ao Sigilo Profissional na Medicina do Trabalho, onde, com a devida venia, comete um equívoco que não podemos deixar de comentar. (Bandini, Marcia, et al. (orgs.) Questões éticas na prática da medicina do trabalho: sigilo profissional e confidencialidade / Marcia Bandini, Mário Bonciani e Paulo Rebelo (organizadores). – São Paulo: editora anamt, 2017.)
Verifica-se em tal documento a página 49 o seguinte questionamento:
“No caso de ações judiciais, como devem ser tratadas as informações de prontuário médico ocupacional? Posso dar informações ao jurídico da empresa?”
Com a seguinte resposta:
“Levando-se em consideração o Art. 76 do Código de Ética Médica, o médico é proibido de fornecer ou divulgar informações privadas obtidas a partir de exame médico realizado, em especial em trabalhadores, mesmo que empresas interessadas solicitem a divulgação de tais dados, exceto se o silêncio colocar em risco a saúde de trabalhadores ou da comunidade onde eles estão inseridos, devendo ser bem observada a questão do interesse público sobre o interesse privado e a casuística para concatenação desses dois elementos. O Art. 89 proíbe a liberação de cópias de prontuário, salvo autorização escrita pelo paciente em questão ou em casos de defesa do profissional médico. Também o Código Penal veta a quebra do sigilo profissional, aplicável também à prática médica. Uma cópia de prontuário médico somente pode ser cedida sob ordem judicial e mediante autorização do paciente/trabalhador, e, nesse caso, a cópia deve ser encaminhada em envelope lacrado, identificado como “confidencial”, aos cuidados do solicitante legal e acompanhada da cópia do consentimento do paciente/ trabalhador. Finalmente é importante salientar que o médico que deixar de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória pode resultar em pena de detenção, de seis meses a dois anos, além de multa infligida (Art. 269, do Código Penal).”
Ocorre que este texto não está de acordo com o Código de Ética Médica vigente e muito menos com o Código de Processo Civil, podendo gerar problemas aos médicos que seguirem essa recomendação, que não apresenta amparo ético e muito menos legal.
Verifica-se na redação do trecho que a entidade entende que o médico do trabalho só pode liberar cópia de prontuários requisitados judicialmente com autorização do colaborador da empresa, no caso, paciente.
Não é isso que consta no Código de Ética Medica e não é isto que está previsto na legislação.
O CEM avançou muito em sua atual redação em relação a entrega de prontuários a terceiros, deixando as coisas bem claras.
Consta no artigo 89 do Código de Ética Médica:
Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.
§ 1º Quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz.
§ 2º Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional.
Como podemos observar da simples leitura do referido dispositivo, são 3 as hipóteses que permitem o médico liberar cópia do prontuário médico: autorização do paciente, atendimento de ordem judicial ou para sua própria defesa.
Vejamos que são situações distintas, não havendo necessidade da concomitância das hipóteses para a liberação da cópia do prontuário médico.
Ou seja, a redação dada pela ANAMT em sua orientação ao utilizar a conjunção e ao invés de ou entre as hipóteses possíveis para liberação do prontuário médico ocupacional deixa a impressão que o médico do trabalho terá que solicitar autorização do trabalhador para entregar o prontuário que foi requisitado judicialmente, o que não é verdade.
“Uma cópia de prontuário médico somente pode ser cedida sob ordem judicial e mediante autorização do paciente/trabalhador, e, nesse caso, a cópia deve ser encaminhada em envelope lacrado, identificado como “confidencial”, aos cuidados do solicitante legal e acompanhada da cópia do consentimento do paciente/ trabalhador.” Destaque nosso
É simplesmente impossível que o médico do trabalho obtenha essa autorização do colaborador, pois em quase a totalidade dos casos estamos lidando com ex-trabalhadores em litígio com a sua ex-empresa, o que torna inviável tal prática.
Além de não ser razoável tal orientação, legalmente, o Código de Processo Civil em sua atual redação estabelece em seu artigo 473, parágrafo terceiro, que o perito judicial pode requerer o documento que julgar necessário a produção da prova técnica, inclusive os que estão em poder da parte.
Desta forma, se o perito judicial requerer e o juiz, a quem cabe a decisão final, determinar a juntada do prontuário médico ocupacional, não cabe ao médico do trabalho se insurgir contra tal decisão judicial, sob pena de ser penalizado por desobediência à ordem judicial.
Deve, sim, tomar o cuidado de colocar estes documentos à disposição do perito judicial, como determina o parágrafo primeiro do artigo 89 do CEM citado anteriormente.
Portanto, a recomendação da ANAMT está contrariando o Código de Ética Medica e o Código de Processo Civil vigente, precisando ser revista.
A falta de clareza nestas questões pode induzir o médico do trabalho ao erro, deixando de atuar como deveria ética e legalmente.
Espero que o bom senso impere e esta redação da orientação seja revista.
Fico tranquilo, pois fiz minha parte!
Autor: Dr. João Baptista Opitz Neto – Médico do Trabalho, Mestre em Bioética e Biodireito pela UMSA/AR; Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas; Especialista em Ergonomia; Perito Judicial / Assistente Técnico nas áreas trabalhista, cível e previdenciária. Autor do livro “Perícia Médica no Direito” (Editora Rideel); Colunista do portal SaudeOcupacional.org; Professor e Palestrante nas área de Pericia Médica, Medicina do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho; Diretor do Instituto Paulista de Higiene, Medicina Forense e do Trabalho.
O Dr. João Baptista Opitz Neto escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Opitz”.
Obs.: o texto acima é de autoria do colunista João Baptista Opitz Neto, e não reflete a opinião institucional do SaudeOcupacional.org.