O TELETRABALHO E A REFORMA TRABALHISTA – RETROCESSO SOCIAL NA SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO
A lei 13.467/17 teve a oportunidade de inovar nesta modalidade de trabalho cada vez mais utilizada. Inspirou (em parte) no modelo legislativo português que possui três grandes alicerces:
1 – Critério espacial: trabalho com visualização física fora da empresa;
2 – Critério instrumental: o labor utiliza tecnologia da comunicação e informação;
3 – Critério temporal: a atividade deve ter habitualidade.
Entretanto, a lei 13.467/17 não foi capaz de clarificar e sedimentar o conceito de teletrabalho, nos moldes do ordenamento jurídico português. Nossa lei ao invés de utilizar o termo “HABITUALIDADE”, já consagrado no nosso ordenamento jurídico pátrio, optou pelo termo “PREPONDERANTE”, conceito impreciso. Vejamos, in verbis:
Art. 75-B.
Considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo.
Parágrafo único. O comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades específicas que exijam a presença do empregado no estabelecimento não descaracteriza o regime de teletrabalho. (grifo nosso)
O termo “preponderante” certamente irá promover inúmeras discussões jurídicas nas lides trabalhistas. O que de fato é “preponderante”?
Obviamente, nosso legislador teria simplificado muito o conceito caso adotasse o termo “habitualmente”!
Uma vez enfrentada a imprecisão conceitual do teletrabalho, passemos analisar as hipóteses para exclusão do trabalho externo, estampados no artigo 62 da CLT:
Art. 62 – Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:
I – os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;
II – os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial.
III – os empregados em regime de teletrabalho. (grifo nosso)
Passamos a notar a inclusão do inciso III no artigo 62 da CLT pela reforma trabalhista.
O inciso I merece uma menção. Se refere ao trabalhador excluído da proteção da jornada de trabalho por se locomover ao realizar as atividades, tais como os motoristas de caminhão, vendedor viajante e motoqueiros, por exemplo.
Ressalta-se que este inciso, em virtude das tecnologias existentes na atualidade (GPS, por exemplo), este item acaba se transformando em letra morta.
O inciso III, incluído na reforma trabalhista, exclui os teletrabalhadores, o que é um dispositivo claramente inconstitucional, pois uma vez que há o controle telemático (e não o físico) da jornada de trabalho, confronta os artigos 6º e 7º da Constituição Federal:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…)
IX – remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; (…)
XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; (…)
XVI – remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal; (grifo nosso)
Na tentativa de harmonizar a lei 13.467/17 com nossa Constituição, o inciso III deveria ser aplicado RESTRITIVAMENTE, ou seja, apenas para os casos que não há controle patronal da jornada. Ex: nas circunstâncias de controle patronal apenas da produção do empregado durante a jornada.
Outra questão interessante que envolve o teletrabalho é acerca da inalterabilidade contratual lesiva, disposto no artigo 468 da CLT:
Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia. (grifo nosso)
Em uma situação prática: o funcionário mudou de cidade por causa do teletrabalho e, em um momento posterior, o empregador designa o colaborador para trabalhar em outra localidade. No caso da não concordância do empregado, o empregador deverá demiti-lo sem justa causa.
Um outro aspecto tormentoso que envolve o teletrabalho se refere às ferramentas de trabalho e está estampado no artigo 75-D da CLT, caput:
Art. 75-D. As disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito. (grifo nosso)
O artigo desconsidera claramente o contrato realidade. O clássico artigo 2º, caput, da CLT conceitua o que é empregador (princípio da alteridade):
Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços. (grifo nosso)
Ora, para execução das atividades do trabalhador, quem irá comprar o computador? Quem irá pagar as despesas com Internet ou energia? Quem irá pagar a conta do telefone celular utilizado para o trabalho? E mais: suponhamos que o funcionário trabalhe em uma cidade de clima quente (ex. Manaus). Quem arcaria com os custos de aquisição e manutenção do ar condicionado? Em uma situação inversa (menos comum no Brasil), o funcionário trabalhe em uma localidade de clima frio (ex. Monte Verde). Quem arcaria com os custos de aquisição e manutenção de um aquecedor? As duas últimas situações (diametralmente opostas) visam atender ao padrão ergonômico de temperatura, conforme leciona a Norma Regulamentadora 17 (NR-17).
Obviamente, o legislador foi MUITO INFELIZ ao prever que o contrato escrito é que vai determinar quem irá custear as despesas da atividade econômica. Para todos nós, o artigo 2º da CLT é muito claro: será o empregador!
Então o que poderia ser previsto em contrato escrito seria a forma de ressarcimento ao colaborador; como o empregador iria reparar/ dar manutenção nas ferramentas de trabalho, dentre outros neste direcionamento.
Finalmente chegamos ao teratológico artigo 75-E da CLT, ao meu ver:
‘Art. 75-E. O empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho. Parágrafo único. O empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador.’” (Grifo nosso)
Em apertada síntese o dispositivo diz o seguinte: o empregador irá INSTRUIR o empregado para tomar precauções a fim de se evitar seu adoecimento no trabalho.
Ora, o dispositivo claramente não vincula o empregador às suas responsabilidades de prevenir os acidentes de trabalho, além de gerir a saúde e segurança no trabalho, por meio de fornecimento de EPC/ EPI (equipamentos de proteção coletiva e individual) ao empregado, instruir e fiscalizar, fazer cumprir as normas de saúde e segurança do trabalhador, dentre outros. Assim vejamos a norma regulamentadora (NR-1), item 1.7 e NR-6, item 6.6:
1.7. Cabe ao empregador:
a) cumprir e fazer cumprir as disposições legais e regulamentares sobre segurança e medicina do trabalho; (101.001-8 / I1)
b) elaborar ordens de serviço sobre segurança e saúde no trabalho, dando ciência aos empregados por comunicados, cartazes ou meios eletrônicos. (101.002-6 / I1) (Alterado pela Portaria SIT 84/2009).
c) informar aos trabalhadores: (101.003-4 / I1)
I – os riscos profissionais que possam originar-se nos locais de trabalho;
II – os meios para prevenir e limitar tais riscos e as medidas adotadas pela empresa;
III – os resultados dos exames médicos e de exames complementares de diagnóstico aos quais os próprios trabalhadores forem submetidos;
IV – os resultados das avaliações ambientais realizadas nos locais de trabalho.
d) permitir que representantes dos trabalhadores acompanhem a fiscalização dos preceitos legais e regulamentares sobre segurança e medicina do trabalho. (101.004-2 / I1)
e) determinar os procedimentos que devem ser adotados em caso de acidente ou doença relacionada ao trabalho. (Redação dada pela Portaria SIT 84/2009) (Grifo nosso).
6.6 Responsabilidades do empregador. (alterado pela Portaria SIT/DSST 194/2010)
6.6.1 Cabe ao empregador quanto ao EPI :
a) adquirir o adequado ao risco de cada atividade;
b) exigir seu uso;
c) fornecer ao trabalhador somente o aprovado pelo órgão nacional competente em matéria de segurança e saúde no trabalho;
d) orientar e treinar o trabalhador sobre o uso adequado, guarda e conservação;
e) substituir imediatamente, quando danificado ou extraviado;
f) responsabilizar-se pela higienização e manutenção periódica; e,
g) comunicar ao MTE qualquer irregularidade observada. h) registrar o seu fornecimento ao trabalhador, podendo ser adotados livros, fichas ou sistema eletrônico. (Inserida pela Portaria SIT/DSST 107/2009)
Ou seja, o descumprimento da NR-1 por parte do empregador tem o condão de estabelecer culpa por negligência.
Em Portugal, no que se refere à fiscalização patronal do ambiente de trabalho, o Engenheiro/Técnico de Segurança do Trabalho visita o local de trabalho do empregado. A reforma trabalhista é completamente omissa neste quesito! E, ao meu ver, a aplicação das NR’s é medida necessária para efetividade do artigo 7º, inciso XXII da Constituição Federal:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;
Deste modo, a Constituição salvaguardará a proteção ao trabalho seguro, não excluindo o dever do empregador de fornecer EPC/EPI e fiscalizar. Além do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM) poder fiscalizar os postos de teletrabalho, conforme NR-1!
Adicionalmente, a reforma trabalhista silencia acerca do DIREITO À DESCONEXÃO (hiperconectividade que interfere na vida pessoal, relacionamentos afetivos, gera ansiedade e depressão). Itália e França já regulam este direito, mas o Brasil nada estabeleceu a este respeito. Outro aspecto que a lei 13.467/17 silencia é quanto à PROTEÇÃO À PRIVACIDADE/ INTIMIDADE DO TRABALHADOR. Pode-se, por exemplo, fiscalizar o empregado exigindo que o mesmo trabalhe com uma webcam ligada?
Finalmente, outro ponto tormentoso é o silêncio legislativo acerca dos DADOS INFORMACIONAIS DA EMPRESA. A empresa pode ter acesso remoto ao computador do funcionário e recolher dados sensíveis da navegação do trabalhador em outras páginas?
II – CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A reforma trabalhista DESREGULAMENTA O TELETRABALHO e a jornada de trabalho destes trabalhadores que são hipossuficientes na relação de trabalho (realidade fática), ao estabelecer que o custo do teletrabalho será regulamentado por meio do trabalho escrito. O legislador deveria regulamentar todas as questões já debatidas ao longo deste artigo, mas infelizmente optou por deixar a cargo do empregador fazê-lo com o empregado como se o mesmo não fosse hipossuficiente.
Autor: Rodrigo Tadeu de Puy e Souza – Médico. Advogado. Pós-Graduado em Medicina do Trabalho. Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: rodrigodepuy@yahoo.com. Site: www.pimentaportoecoelho.com.br
O Dr. Rodrigo Tadeu de Puy e Souza escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Puy”.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Rodrigo Tadeu de Puy e Souza, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.