Prezados leitores.
De forma respeitosa e técnica, sem absolutamente nenhum viés político-partidário, ouso colocar a seguir algumas considerações sobre o recente Parecer CFM n. 50/2017.
Em suma, esse documento conclui que:
1. É infração ética realizar perícia médica em presença de assistente técnico não médico;
2. O médico perito do juízo não está impedido de vedar a participação de advogados das partes para acompanhar a perícia, quando se sentir pressionado, constrangido ou com sua liberdade profissional ameaçada;
3. A solicitação e a autorização expressas do periciado para acompanhamento da perícia pelos advogados das partes deverão constar dos autos do processo, bem como, caso ocorra, a negativa do jurisperito, fundamentada;
4. O médico perito do juízo ao permitir a presença de advogados das partes durante o exame médico pericial vedará qualquer interferência dos mesmos no ato médico.
Quanto aos itens 2, 3 e 4, salvo situações em que a entrada do advogados já venham determinadas pelos juízes – situações que merecem uma melhor avaliação caso-a-caso, concordo com a ideia geral transmitida pelo parecer. Assim, cabe-me ratificá-lo, uma vez que meu pensamento repousa no mesmo sentido.
Quanto ao item 1 (“É infração ética realizar perícia médica em presença de assistente técnico não médico.”), com todas as venias, surgem-me algumas questões quanto a fundamentação empregada no Parecer CFM n. 50/2017. Antes de adentrar nessas questões, sublinho uma frase do próprio documento que resume o meu pensamento e convicção sobre o tema:
“… nos parece ilógico, descabido e incoerente a contratação de um profissional não habilitado tecnicamente para o objeto da perícia (no caso, perícia médica).”
É no que acredito também! O que sempre me pareceu mais lógico, adequado e coerente é que “cada macaco esteja no seu galho” dentro de uma perícia técnica, ou seja: se o perito é médico, que o assistente técnico também o seja; se o perito é engenheiro, que o assistente técnico também o seja; se o perito é contador, que o assistente técnico também o seja, e assim sucessivamente.
Nessa esteira, reputo como impecável a mensagem que o Parecer n. 50/2017 deixa à Juíza autora da consulta, quando a sugere que, ao designar o perito do juízo, já coloque no Despacho: “Intimem-se as partes, devendo cientificar os assistentes-técnicos médicos, únicos autorizados a acompanhar o exame médico”. Perfeito! Se todos os juízes fizessem isso, toda essa discussão já teria se esgotado há anos.
Mas como a discussão mantém-se, voltemos a pauta.
Para o bem da verdade, devo reconhecer que há uma distância imensa que separa minha convicção (e assumo: nesse caso, minha vontade, meu desejo) daquilo que venha ser legal e/ou ético. Especialmente quanto a questão ética, surgem-me algumas questões quanto a fundamentação trazida pelo Parecer CFM n. 50/2017 sobre o tema. Vamos a elas.
No que tange a afirmativa de que “é infração ética realizar perícia médica em presença de assistente técnico não médico”, segue trechos da argumentação contida no próprio Parecer CFM n. 50/2017:
“… não é possível o médico discutir assuntos médicos e técnicos com profissionais não médicos, sendo ainda mais nocivo participar de uma discussão técnica em audiência com o Juízo.”
“A discussão técnica com não médicos sobre o caso concreto da prova pericial fere a conduta ética, como já exposto anteriormente, mormente o Art. 10 do Código de Ética Médica:
Art. 10. Acumpliciar-se com os que exercem ilegalmente a Medicina ou com profissionais ou instituições médicas nas quais se pratiquem atos ilícitos.”
*Nota 1 do autor: Acumpliciar = tornar(-se) cúmplice ou conivente com (algo ou alguém); fazer colaborar ou colaborar com; conluiar(-se), cumpliciar(-se).
Eis as questões que me vieram:
a) Se não é possível o médico discutir assuntos médicos e técnicos com profissionais não médicos, num exemplo onde o fisioterapeuta figure como perito, e o médico como assistente técnico: caso o médico participe da perícia, incorre também ele em infração ética? No caso narrado, o médico então deve declinar/recusar seu encargo como assistente técnico?
Minha opinião: se a fundamentação a ser usada for a do Parecer CFM n. 50/2017, a resposta para as duas perguntas, por coerência, é “sim”. Mas se a fundamentação for a literalidade do art. 466 do CPC (“o assistente técnico não está sujeito a impedimento ou suspeição”), a resposta para a segunda pergunta é “não, o médico não precisa declinar/recusar seu encargo como assistente técnico”.
b) Se a atuação de fisioterapeutas (por exemplo) na função de assistentes técnicos de uma perícia médica deve ser considerada como exercício ilegal da medicina (que por sua vez é tipificado como crime passivo de reclusão no art. 282 do Código Penal), o médico perito que não denuncia imediatamente esse fisioterapeuta à polícia ou autoridade competente também não incorre em infração ética? Não seria esse silêncio um “acumpliciar-se (ou tornar-se cúmplice) com os que exercem ilegalmente a medicina”, nos termos do art. 10 do Código de Ética Médica? Não seria mais adequado que o Parecer CFM n. 50/2017, além de contraindicar a participação do perito médico, o instruísse a também denunciar o fisioterapeuta (por exemplo) imediatamente?
*Nota 2 do autor: No Direito Penal, cúmplice é aquele que contribui de forma secundária para a realização de crime de outrem, ou seja, um codelinquente.
Minha opinião: se a fundamentação a ser usada para responder essas perguntas for a interpretação do Parecer CFM n. 50/2017, creio que o médico que não denuncia um fisioterapeuta que reiteradamente se presta ao exercício ilegal da medicina torna-se cúmplice dele e, portanto, comete infração ética. Por outro lado, não há relatos no Brasil de fisioterapeutas que tenham sido julgados e apenados criminalmente por exercício ilegal da medicina por atuarem como peritos e/ou assistentes técnicos em perícias judiciais (independente do tema objeto da perícia). Essa constatação fatalmente me faz considerar que a Justiça Brasileira jamais estabeleceu que houvesse tipificação de exercício ilegal nos casos narrados (mesmo com vários processos versando sobre o tema). E se isso é verdade, não há o que ser denunciado pelo médico e, consequentemente, não há afronta ao art. 10 do Código de Ética quando o médico realiza perícia médica em presença de assistente técnico não médico.
c) Extrapolando um pouco, se a atuação de fisioterapeuta (por exemplo) na função de perito nomeado pelo juiz para avaliar doença ocupacional e seu nexo com o trabalho deve ser considerada como exercício ilegal da medicina (um crime passivo de reclusão nos termos do art. 282 do Código Penal), nesses casos o juiz deve ser considerado o mandante do crime e ser condenado conjuntamente com o fisioterapeuta?
Minha opinião: apesar de parecer absurda, essa questão apresenta-se coerente do ponto de vista jurídico caso consideremos a ocorrência do crime de exercício ilegal da medicina pelo fisioterapeuta que atua como perito. Deixo a resposta final por conta de vocês. Ah.. e não deixem de levar em conta a realidade, aquilo que vivenciamos todos os dias.
Enfim, sem tirar o brilhantismo do Parecer CFM n. 50/2017, as respostas oficiais (do próprio CFM) para essas e outras questões, suscitadas com a própria leitura do documento, merecem ser feitas num momento futuro, após outra provocação da autarquia, para que não pairem dúvidas sobre o tema, para que sejamos cada vez mais assertivos e nos desgastemos cada vez menos rumo aos objetivos que pretendemos como classe profissional.
Para concluir, como advogado, sinto-me na obrigação de registrar para meus colegas médicos, que um Parecer do CFM (qualquer que seja ele) não tem poder vinculativo, ou seja, de cumprimento obrigatório. Conquanto seja um importantíssimo documento norteador de condutas, ele se presta a responder uma consulta específica, normalmente feita sobre um caso concreto específico e não generalizável. Diferente são as Resoluções do CFM: essas sim, de cumprimento obrigatório e qualificadoras do que venham ser as condutas éticas/antiéticas.
Fiquem à vontade para os comentários (alinhados ou contraditórios). Reflitamos!
Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações. Colunista da Revista PROTEÇÃO.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.
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