20 jan 2018

Divergir é preciso

postado em: Perícias Médicas

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Divergir do Dr. Marcos Mendanha não é tarefa fácil. A elegância do texto é tal que, per si, dá a impressão de veracidade. Entretanto um olhar mais atento mostra que não é o caso das considerações sobre o Parecer 50/2017 do CFM.

A importância e a inestimável contribuição que o Dr, Mendanha tem dado durante anos à Medicina do Trabalho e à Perícia Médica são inquestionáveis. Trata-se de reconhecimento conquistado pela relevância e constância de sua obra. A importância se dá pelos ensinamentos passados em seus artigos, pela qualidade dos seus congressos, pela expressiva contribuição na formação de profissionais competentes, como também pela ardorosa defesa que faz das divergências.

Aqui proponho também a discussão de ideias e não de pessoas, posto que sobre aquelas há o que ser questionado como controvérsia. O objetivo é engrandecer o tema, com discussão saudável, com o intuito de salvaguardar o Direito da sociedade em áreas tão sensíveis e importantes como a saúde e a justiça.

A divergência não afasta minha admiração e respeito pelo autor. Feitos os necessários esclarecimentos, vamos ao tema.

No artigo “Considerações sobre o Parecer CFM Nº 50/2017“, disponível em https://www.saudeocupacional.org/2018/01/consideracoes-sobre-o-parecer-cfm-n-502017.html, o autor faz considerações sobre o parecer e apresenta alguns questionamentos. Sobre estes questionamentos apresento algumas divergências.

No questionamento (a) o articulista, ao analisar a afirmativa do Parecer CFM n. 50/2017 “é infração ética realizar perícia médica em presença de assistente técnico não médico”, pergunta: “num exemplo onde o fisioterapeuta figure como perito, e o médico como assistente técnico: caso o médico participe da perícia, incorre também ele em infração ética? No caso narrado, o médico então deve declinar/recusar seu encargo como assistente técnico?” (grifo do original).

Em seguida descreve que o parecer do CFM indica que ambas as respostas seriam “sim”, porém ressalva que “se a fundamentação for a literalidade do art. 466 do CPC (‘o assistente técnico não está sujeito a impedimento ou suspeição’), a resposta para a segunda pergunta é ‘não, o médico não precisa declinar/recusar seu encargo como assistente técnico’.”

Noto que o articulista defende que somente a resposta à 2ª pergunta seria “NÃO”. Neste caso necessariamente a primeira resposta continuaria sendo “SIM”. Assim sendo, o médico assistente técnico cometeria infração ética ao assistir perícia médica realizada por não médico; mesmo que o não médico tenha conhecimento paramédico.

Analisando a literalidade do artigo se cria uma situação difícil: o mesmo tempo que comete infração ética o médico não precisaria declinar seu encargo como assistente técnico. Um leitor menos atento poderia entender que o Art. 466 do CPC poderia livrar o médico da infração ética.

A concordância do texto com o parecer do CFM não parece ter sentido no contexto que o artigo foi escrito. Este também pode ser o entendimento de outros leitores.

Considerando o acima exposto, é prudente e necessário abordar o texto sobre a ótica das duas respostas serem “NÃO”. Se assim for, haveria diferença de opinião a justificar o artigo.

O autor estaria dizendo que a “ literalidade do art. 466 do CPC (‘o assistente técnico não está sujeito a impedimento ou suspeição’)”, afastaria a infração ética, em consequência disso o médico não precisaria declinar da função de assistente técnico.

Faço um parêntese para ressaltar que o Parecer do CFM 50/2017 não analisa a conduta médica sob a ótica do CPC, até porque não é esta a função do Conselho. O CFM avalia conduta médica sob a ótica do código de ética médica.

Voltando ao tema.

Neste caso, é preciso ir até o artigo 466:

Art. 466. O perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso.
§ 1o Os assistentes técnicos são de confiança da parte e não estão sujeitos a impedimento ou suspeição.

A lógica defendida seria a seguinte:

O médico estaria livre de cumprir o código de ética médica e nem precisaria declinar do encargo de assistente técnico por não estar sujeito a impedimento ou suspeição. Para este argumento proceder é preciso atribuir sentido ilimitado à expressão “impedimento ou suspeição”

Defender que existe situação onde o médico pode atuar, sem estar sujeito ao nosso código de ética causa estranheza. Não conheço precedente neste sentido aqui ou em outro país.

Mais ainda, o art. 466 do CPC não é exclusivo do médico, o que significa que igualmente os engenheiros, contadores ou qualquer outro integrante de profissões regulamentadas estariam isentos de cumprir os respectivos códigos de éticas no exercício da assistência técnica. Argumento inusitado, por certo.

Mais inusitado é que alguns defendem que a autonomia em relação às normas vigentes seria mais ampla, praticamente irrestrita. Advogam que este artigo do CPC autorizaria a indicação de qualquer indivíduo para ser assistente técnico em perícia médica. O próprio autor da reflexão defende este entendimento conforme afirmou em texto publicado em rede social: “Alguém poderá escolher então um pedreiro para AT [assistente técnico] de perícia médica? Legalmente, sim.”

“Ser de confiança da parte” seria a única exigência para ser assistente técnico. Em sendo assistente técnico o indivíduo encontra-se livre, não subordinado aos códigos de ética profissionais e nem às qualificações profissionais estabelecidas em lei.

Corroborando, como fica o assistente técnico diante do Art. 5º, XIII, da Constituição de 1988?

“XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendida s as qualificações profissionais que a lei estabelecer.”

Apesar da Constituição impor a existência de regras específicas para o exercício profissional, há quem defenda que “qualquer um” pode fazer “qualquer coisa”, na condição de assistente técnico, alegando que o CPC seria mais adequado para tutelar as relações profissionais do que a própria legislação profissional. O significado dado à expressão “impedimento ou suspeição” é tão amplo a ponto de livrar os não médicos de crimes como o exercício ilegal da medicina

Em nenhum momento qualquer restrição é colocada à expressão “impedimento ou suspeição”. Como resultado o assistente técnico criado por esta visão seria um ser quase místico, de poder praticamente ilimitado, sobre-humano. Esta deformada figura jurídica resultante mostra o desacerto de atribuir sentido ilimitado ao § 1º do artigo 466 do CPP. Tal situação é incompatível com o estado democrático de direito.

É fato que o assistente técnico difere do perito pois o perito está sujeito ao Art. 467 do CPC que diz “O perito pode escusar-se ou ser recusado por impedimento ou suspeição.”

É preciso pois saber quais são os motivos de impedimento e suspeição definidos na lei. Estes motivos estão definidos no CAPÍTULO II – DOS IMPEDIMENTOS E DA SUSPEIÇÃO.

A legalidade da expressão “impedimento e suspeição” encontra-se nos artigos 144 e 145 do próprio CPC:

Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:
I – em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como membro do Ministério Público ou prestou depoimento como testemunha;
II – de que conheceu em outro grau de jurisdição, tendo proferido decisão;
III – quando nele estiver postulando, como defensor público, advogado ou membro do Ministério Público, seu cônjuge ou com panheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive;
IV – quando for parte no processo ele próprio, seu cônjuge ou companheiro, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive;
V – quando for sócio ou membro de direção ou de administração de pessoa jurídica parte no processo;
VI – quando for herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de qualquer das partes;
VII – em que figure como parte instituição de ensino com a qual tenha relação de emprego ou decorrente de contrato de prestação de serviços;
VIII – em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório;
IX – quando promover ação contra a parte ou seu advogado.
§ 1. Na hipótese do in ciso III, o impedimento só se verifica quando o defensor público, o advogado ou o membro do Ministério Público já integrava o processo antes do início da atividade judicante do juiz.
§ 2. É vedada a criação de fato superveniente a fim de caracterizar impedimento do juiz.
§ 3. O impedimento previsto no inciso III também se verifica no caso de mandato conferido a membro de escritório de advocacia que tenha em seus quadros advogado que individualmente ostente a condição nele prevista, mesmo que não intervenha diretamente no processo.

Art. 145. Há suspeição do juiz:
I – amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados;
II – que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o pr ocesso, que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa ou que subministrar meios para atender às despesas do litígio;
III – quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou companheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive;
IV – interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes.
§ 1. Poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões.
§ 2. Será ilegítima a alegação de suspeição quando:
I – houver sido provocada por quem a alega;
II – a parte que a alega houver praticado ato que signifique manifesta aceitação do arguido.

O Artigo 148 define quais são os atores processuais que estão sujeitos a impedimentos e suspeição:

Art. 148. Aplicam-se os motivos de impedimento e de suspeição:
I – ao membro do Ministério Público;
II – aos auxiliares da justiça; (grifei)
III – aos dem ais sujeitos imparciais do processo.

O Artigo 149 define que o perito é auxiliar da justiça.

Art. 149. São auxiliares da Justiça, além de outros cujas atribuições sejam determinadas pelas normas de organização judiciária, o escrivão, o chefe de secretaria, o oficial de justiça, o perito, o depositário, o administrador, o intérprete, o tradutor, o mediador, o conciliador judicial, o partidor, o distribuidor, o contabilista e o regulador de avarias. (grifei)

Resta claro que o § 1º do Art. 466 do CPP quando diz que “Os assistentes técnicos são de confiança da parte e não estão sujeitos a impedimento ou suspeição.” está se referindo aos motivos de impedimento e suspeição definidos em lei. Não há autorização implícita ou explicita que permita usar a expressão “impedimento ou suspeição” como sinônimo de impunidade. A legalidade não permite.

Ao atribuir sentido diferente da definição legal para a expressão “impedimento ou suspeição”, rompe-se a relação entre a conclusão e a premissa apresentada como fundamento jurídico. Quebra-se o raciocínio logico, esvai-se o nexo. Rompe-se com a legalidade.

A premissa legal é verdadeira, porém, a conclusão é falsa e não existe relação entre a conclusão e o dispositivo legal citado.

Os motivos de impedimento ou suspeição não autorizam ninguém a descumprir os códigos de ética médica, nem a desrespeitar os qualificadores profissionais definidos em lei ou qualquer outro dispositivo legal.

Em uma perícia médica, um médico pode ser assistente técnico de um amigo, porém, não pode ser perito em processo que envolva um amigo. Este é um exemplo da diferença promovida pelo § 1º do Art. 466.

Em seguida o texto pergunta se quando um não médico pratica ato médico é ou não exercício ilegal da medicina e se o médico, ciente desta situação, deve ou não denunciar o não médico? Assim se expressa:

“Minha opinião: se a fundamentação a ser usada para responder essas perguntas for a interpretação do Parecer CFM n. 50/2017, creio que o médico que não denuncia um fisioterapeuta que reiteradamente se presta ao exercício ilegal da medicina torna-se cúmplice dele e, portanto, comete infração ética. Por outro lado, não há relatos no Brasil de fisioterapeutas que tenham sido julgados e apenados criminalmente por exercício ilegal da medicina por atuarem como peritos e/ou assistentes técnicos em perícias judiciais (independente do tema objeto da perícia). Essa constatação fatalmente me faz considerar que a Justiça Brasileira jamais estabeleceu que houvesse tipificação de exercício ilegal nos casos narrados (mesmo com vário s processos versando sobre o tema). E se isso é verdade, não há o que ser denunciado pelo médico e, consequentemente, não há afronta ao art. 10 do Código de Ética quando o médico realiza perícia médica em presença de assistente técnico não médico.”

Aqui também existe uma tese pouco vista. O texto defende, em síntese, que, como não existe fisioterapeuta condenado por exercício ilegal da medicina ao realizar não haveria crime. O definidor de crime deixa de ser sua previsão legal e passa a ser a presença ou ausência de condenação. A impunidade faria com que o crime previsto em lei deixasse de existir. Pouco usual é este argumento.

Gerações viveram no Brasil acreditando que a corrupção jamais seria punida. A obstinação e o apego à lei fizeram com que o “mensalão” ocorresse. O “mensalão” criou condições para a investigação e revelação do que talvez seja o maior esquema de corrupção do mundo. Empresas e agentes públicos já foram exemplarmente punidos e os políticos estão a caminho. A impunidade não define que o crime não existe. Crime é o que está previsto em lei.

Perícia médica é ato médico. Praticar ato médico sem ser médico é exercício ilegal da medicina. Pouco importa que o infrator tem ou não formação paramédica. Basta não ser médico.

No terceiro questionamento o texto estende o argumento acima, aos juízes. Da mesma maneira, o crime não é definido pelo mandante. Crime é definido por lei. Se um juiz ordena a realização de ato criminoso é mandante de ato criminoso. Aqui também não cabe o argumento que a impunidade afasta o crime.

Com todo o respeito aos que divergem, o não médico, mesmo tendo formação paramédica, somente deixará de exercer ilegalmente a medicina ao realizar pericia médica em duas situações: quando a perícia médica deixar de ser ato médico ou quando o não médico se formar em medicina.

Até lá, a legalidade do código de ética médica está mantida em todos os atos médicos, independentemente de onde se realizem. Da mesma maneira as qualificações profissionais legalmente necessárias para o exercício da medicina continuam valendo.

Autor: Marcos Alvarez – Médico, formado na FAMERP em 1984, cirurgião geral via residência médica, Médico Endoscopista (SOBED/AMB), Médico do Trabalho (ANAMT/AMB), especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas (ABMLPM/AMB). É Pós-Graduado em Ergonomia. Possui experiência na área pericial de mais de 20 anos de atuação.

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