Professor titular de sociologia do Instituto de Filosofia e ciências humanas da Unicamp, Ricardo Antunes é Graduado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas, mestre pela Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela USP e pós-doutor em ciências humanas pela Universidade de Sussex (Brighton, Inglaterra).
O grave momento atual – Em sua exposição, o professor abordou as formas de escravidão no trabalho que, nas palavras dele, “o mundo tem nos oferecido em abundância”. Antunes ressalta que, em sua opinião, fruto de 40 anos de reflexão como sociólogo, este é o pior momento que se vive no mundo do trabalho, no Brasil e em escala global, desde os anos 60.
Segundo o professor, o trabalho escravo contemporâneo não pode ser dissociado da desvalorização que os direitos trabalhistas vêm sofrendo em escala global e que reforçam a sua existência. Por isso, alerta o palestrante, é preciso refletir sobre o que fazer nessa quadra da história em que vivemos e indagar: Que condições sociais e de trabalho permitem a aberração do trabalho escravo?
Antunes ressalta que, em plena era do capitalismo informacional digital, sob rigorosa hegemonia financeira, um número incalculável de trabalhadores se encontram, em escala global, em situações cada vez mais instáveis e precárias de trabalho: “Assistimos a ampliação do subemprego, do desemprego e, ainda, do desemprego por desalento. No Brasil, mais de 4 milhões se encontram nessa última situação.”, destaca, lembrando que, com a redução do emprego, grande número de pessoas são empurradas para trabalhos precários, ocasionais, intermitentes.
Os movimentos sociais de reação – Para exemplificar, o professor lembra diversos movimentos sociais que eclodiram ao redor do mundo nas duas últimas décadas. Ele conta que, em Portugal, em 2011, eclodiu um movimento de descontentamento, onde milhares de manifestantes estamparam suas revoltas em manifestações, dizendo que havia “um limite à curvatura do trabalho”. Simultaneamente, na Espanha, floresceu o movimento dos “Indignados”, formado por aqueles que não conseguiam emprego ou que tinham apenas trabalhos precários, numa época em que o desemprego na Espanha atingia índices de 53 a 54% da população. Na Inglaterra, no mesmo ano, ocorreu um forte levante social, iniciado depois que um trabalhador taxista negro foi assassinado pela polícia, quando, então, jovens pobres, negros, imigrantes e desempregados se levantaram, resultando na primeira grande explosão social na Inglaterra depois do “poll tax”, a reforma que acabou por sepultar o governo Tatcher. E mais: O professor conta que, nos EUA, quase que simultaneamente a tudo isso, surgiu o movimento de massas “Occupy Wall Street”, denunciando a hegemonia dos interesses do capital financeiro e suas consequências sociais nefastas no aumento do desemprego e do trabalho precarizado, que atingiu ainda mais duramente as condições de vida das mulheres, dos negros e dos imigrantes. Ele ressalta, por fim, o movimento ocorrido na Itália em 2001, conhecido como “mayday”, quando se deu a revolta dos precarizados, que lutavam por direitos e por uma representação autônoma dos jovens imigrantes, qualificados não qualificados, desprovidos de direitos.
O mosaico social perverso de desvalorização global do trabalho -“Onde estão as raízes desses movimentos?”, indaga o professor, respondendo que elas são expressão de um mosaico social perverso, no qual o “zero hour contract”, o “contrato de zero hora”, que já começou há décadas na Inglaterra e no Reino Unido, hoje se esparrama pelo mundo, inclusive pelo Brasil. Como explica o palestrante, trata-se de uma modalidade de contrato onde não se tem determinação de horas a serem trabalhadas, por isso é contrato de zero hora:. “Esses trabalhadores, das mais diversas atividades na Inglaterra, cujo contingente hoje é superior a 1 milhão, recebem uma chamada digital telefônica, por meio de um aplicativo (geralmente uma corporação poderosa) e ganham estritamente pelo que fizerem e não pelo tempo em que permaneceram à disposição, esperando para serem chamados”. – comenta o professor. Ele diz, inclusive, que essa foi a inspiração para o trabalho intermitente que veio com a reforma trabalhista brasileira: “Numa engenhosa forma de escravidão digital, o trabalhador espera, não porque quer, mais porque não tem outra forma de trabalho”, pontua. E conclui:. “Essa sociedade informatizada não é capaz de oferecer um trabalho integral e com direitos. É evidente que essa prática só pode prevalecer num ambiente no qual a legislação social protetora do trabalho seja flexível.”
Na avaliação do professor, o Uber é outro exemplo da precarização do trabalho. Isto porque os motoristas, com seus instrumentos de trabalho, os automóveis, arcam com todas as despesas de seguro, alimentação, limpeza do carro, enquanto um aplicativo ligado a uma grande corporação global, praticante do trabalho flexível, se apropria da força de trabalho desses homens e mulheres, sem qualquer preocupação com os deveres trabalhistas, comenta.
Ainda falando sobre o declínio das condições de trabalho na sociedade contemporânea, o sociólogo frisou que os sistemas de metas e os ritmos intensificados são impostos aos trabalhadores em níveis cada vez mais exagerados, acarretando o aumento dos assédios, dos adoecimentos, das depressões, dos suicídios. Ele lembra que, em 2010, 17 trabalhadores jovens tentaram suicídio na Foxconn, empresa chinesa de terceirização global, dos quais 13 obtiveram sucesso. “Como resposta, o que fez a Foxconn? Passou a exigir que os trabalhadores assinassem um termo se comprometendo a não se suicidar! E colocou telas nas janelas para eles não pularem. Parece até brincadeira, mas é realidade”, lamenta Antunes.
É por isso que, como diz o professor, nesse mundo do trabalho digital flexível o dicionário empresarial não para de inovar: trabalho ocasional, intermitente, flexível e nas mais distintas modalidades. Nessa seara, ele cita uma iniciativa recente na Itália, em que os assalariados ganhavam um voucher pelas horas de trabalho efetivadas, sem qualquer outra garantia trabalhista. Isso foi barrado porque os sindicatos exigiram um plebiscito e o governo recuou. “Mas pode voltar”, alerta o sociólogo.
A escravidão digital – De acordo com o palestrante, movido por essa lógica que se expande em escala global, verifica-se o que muitos denominam de “um processo de uberização global do trabalho”. Segundo ressalta, é assim que o trabalho online surge para desmoronar a separação entre o tempo de vida no trabalho e o tempo de vida fora dele. “Podemos presenciar, então, o crescimento exponencial do trabalho baseado na escravidão digital. É diferente do trabalho análogo à escravidão, tema deste congresso, mas o que se percebe é que se deixarmos os demônios soltos, não há limites” – alerta o expositor.
Como realça o professor, tudo isso ganha mais força onde não há resistência sindical ou movimentos sociais. Ele esclarece que, com os serviços cada vez mais “mercadorizados”, formata-se a empresa moderna, “onde o capital financeiro exige que não haja jornada preestabelecida, nem remuneração fixa, nem atividade pré-determinada e onde até o sistema de metas é flexível, desde que sempre superando a do dia anterior”. E aqui ele lança no ar a seguinte pergunta: “Mas é assim que deveria ser, num mundo onde o ideal seria uma jornada de trabalho reduzida?
A indústria 4.0 e o domínio do “trabalho morto” – Na visão do palestrante, o quadro tende ainda a se agravar. Ele alerta que a articulação complexa entre financeirização da economia e neoliberalismo extremado se desenvolve e, nesse contexto, com uma restruturação permanente dos capitais, em que grandes corporações competem entre si, umas englobando as outras numa guerra declarada, nascem as denominadas “indústrias 4.0”: “Trata-se de uma exponencial expansão das tecnologias digitais, com o surgimento da ‘internet das coisas’ e as suas profundas consequências no espaço microcósmico do trabalho” – destaca.
O professor explica que a denominada indústria 4.0 nasceu na Alemanha, em 2011. E as previsões não são boas. Segundo o palestrante, esse mundo produtivo estruturado a partir das novas tecnologias de informação e comunicação se desenvolve rapidamente, provocando a intensificação de processos produtivos automatizados em toda a cadeia produtiva, de forma que toda a logística empresarial será controlada digitalmente. A principal consequência disso para o mundo do trabalho será a ampliação do “trabalho morto”, tendo o maquinário digital, através desta intermediação das coisas, como dominante e condutor de todo o processo fabril. Haverá, então, a drástica redução do trabalho vivo, com a substituição das atividades assalariadas e manuais por ferramentas automatizadas e robotizadas, sob o comando informacional digital. “Como consequência, mais robôs e máquinas digitais invadirão a produção, tendo as tecnologias da informação e da comunicação como comandantes dessa nova fase de subsunção real do trabalho ao capital, inclusive no setor de serviços”, prognostica.
Sobre a indústria 4.0, o sociólogo esclarece que ela tem como objetivo, segundo seus formuladores, desenvolver ao limite uma nova fase de automação que se diferencia tanto da Revolução Industrial, quanto do salto dado pela indústria automotiva do século 20 e também da reestruturação produtiva que se desenvolveu a partir da década de 1970. “A essas três fases anteriores sobrevirá uma nova, a 4.0, que consolidará a hegemonia informacional digital no mundo produtivo, com celulares, tablets, smartphones etc controlando e supervisionando a produção. Como decorrência dessa nova fase da cyberindústria do Século 21, um novo quadro na divisão internacional do trabalho se formará, com a acentuação das diferenças entre o norte e o sul”, destaca, emendando que nada tem contra a internet na indústria, mas preocupa-se com o que vai acontecer com os trabalhadores e trabalhadoras de hoje.
Para o sociólogo: “É uma tragédia que se avizinha!” E explica: “Se no norte o desemprego é brutal e se, em todo o planeta, neste fluxo global, as condições dos imigrantes são desumanas, para piorar, nessa lógica destrutiva, a flexibilização, a intermitência, o trabalho ocasional, a desregulamentação e o fim da legislação protetora do trabalho são imperativos!” Podemos aceitar isso? – indaga o professor. Ele finaliza dizendo que a Justiça do Trabalho acaba sendo muito penalizada com esse cenário mundial: “A Justiça do Trabalho foi criada para conciliar capital e trabalho. Mas, atualmente, a ordem não é conciliar, mas devastar”, arremata.
Fonte: TRT-MG