O Código de Defesa do Consumidor – CDC preceitua em seu artigo 3º, §2º, que serviço é, in verbis: “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”.
Ora, ainda assim, como veremos, pode ser um tanto desafiador promover a concreção; aplicação do Direito à atividade médica em si, eis que, em geral, os médicos não possuem dever de resultado, mas sim de meio, bem como se trata de uma atividade intelectual.
Em outras palavras, o médico não está obrigado, por exemplo, a atingir a cura de um paciente acometido por alguma doença, mas sim de empregar os meios médicos aplicáveis à situação, em busca da melhora máxima na saúde do paciente.
Além disso, a prestação do serviço médico não é mercadoria; não pode ser visto como algo comercial; empresarial. Pensemos na seguinte situação hipotética: imagine que você se dirija a um consultório médico para agendar uma cirurgia indispensável e o médico te ofereça diferentes preços para tal cirurgia. No valor hipotético de duzentos mil reais para tal, o médico utilizaria todas as técnicas modernas e necessárias e faria uso dos melhores instrumentos e aparatos para a realização da cirurgia. Já uma segunda opção, o valor hipotético de setenta e cinco mil reais, o médico deixaria de utilizar algumas técnicas, bem como utilizaria aparatos e instrumentos de qualidade inferior para realizar o mesmo procedimento.
Verificou o problema da “mercantilização” de uma atividade intelectual? Por tal motivo se trata apenas de uma situação hipotética que, caso fosse aplicável à realidade, levaria ao caos social, já que o médico possui formação técnica e especializada o melhor tratamento possível, dentro de suas limitações, por óbvio. Além disso, frise-se: o médico é obrigado a empregar os meios aplicáveis ao caso em que estiver trabalhando.
É o mesmo que acontece com outras atividades intelectuais, como a advocacia, por exemplo. Ora, imagine um advogado que ofereça seus serviços por um preço X para oferecer uma defesa a um cliente, com a melhor argumentação e com todos os recursos possíveis; mas que ofereça a mesma defesa por um preço X/3, mas que esta não conte com todos os argumentos cabíveis e nem com todos os recursos possíveis. Ora, a contratação do profissional se daria de forma limitada e totalmente descabida, eis que a probabilidade de se atingir o resultado esperado não seria a mesma na segunda situação delineada e, principalmente, porque este profissional também tem obrigação de utilizar os meios devidos e aplicáveis ao caso no qual estiver trabalhando.
Tanto o explanado é verdade que é o que se infere da mens legis contida no parágrafo único do artigo 966 de nosso Código Civil, vejamos: “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.”.
Então é nesse ponto que verificamos que o Direito Civil, aplicável às relações entre particulares é, de fato, também aplicável à atividade médica em geral.
Neste ponto, é importante esclarecer que a responsabilidade civil do médico, em regra, se rege tanto pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) como pelo Código Civil (Lei nº 10.406/02). Nesse sentido, o Código Civil, e o Código de Defesa do Consumidor dispõem que a responsabilidade civil do profissional liberal é de natureza subjetiva, já que exige a prova da “culpa” (imperícia, imprudência e/ou negligência); elemento subjetivo.
Ou seja, para que haja alguma responsabilização do médico (profissional liberal), devem estar presentes os seguintes elementos: a conduta, o dano, o nexo causal (entre a conduta do profissional e o dano ocorrido; similar à relação de “causa e efeito”) e o elemento subjetivo culpa, a qual, em regra, deve ser comprovada pelo paciente que pede a reparação.
Quanto à aplicação do Código de Defesa do Consumidor e a responsabilidade civil médica, o eminente doutrinador Sílvio de Salvo Venosa[1], nos esclarece que:
“Cabe ao direito, hoje tendo em seu bojo o poderoso instrumento da lei do consumidor, colocar nos devidos extremos a responsabilidade civil do médico. Deve ser entendida como responsabilidade médica não somente a responsabilidade individual do profissional, mas também a dos estabelecimentos hospitalares, casas de saúde, clínicas, associações e sociedades de assistências, pessoas jurídicas, enfim, que, agindo por prepostos em atividade cientemente diluída, procuram amiúde fugir de seus deveres sociais, morais e jurídicos. O defeito ou falha da pessoa jurídica na prestação de serviços médicos independe de culpa, nos termos do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. Apenas a responsabilidade do médico, enquanto profissional liberal individual, continua no campo subjetivo (art. 14, § 4º), avaliada de acordo com o art. 186 do Código Civil e seus princípios tradicionais.”.
Em tempo, o art. 186 do Código Civil preceitua que: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”. Ainda nesse sentido, o caput do art. 927 também do Código Civil, determina que: “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”. Já o art. 14, §4º do CDC deixa claro que: “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”.
Verifica-se claramente o intento do legislador de proteção ao consumidor (paciente, neste caso), tendo por base o princípio da boa-fé objetiva, que cria para o fornecedor do serviço (médico, neste caso), alguns deveres além do de cumprir com a prestação do serviço avençado, como o de transmitir informações de forma clara ao paciente acerca da patologia que o acomete, bem como dos tratamentos existentes, de qual tratamento o médico acredita ser o mais recomendado para o caso em questão, bem como quais os riscos dos tratamentos (dever de informação, art. 6º, III, CDC).
Tendo em vista todo o exposto, iniciemos a análise da Telemedicina neste cenário. Regulada pela Resolução nº 2.227/2018 emitida pelo Conselho Federal de Medicina – CFM, a qual define e disciplina a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias, a Telemedicina é definida pelo art. 1º deste documento como, in verbis: “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde.”.
A Telemedicina abrange o telediagnóstico, a teleinterconsulta, a telecirurgia, a teleconferência de ato cirúrgico, a teletriagem médica, o telemonitoramento ou televigilância, a teleorientação, bem como a teleconsulta- da qual trataremos.
Trata-se de uma Resolução que se mostra comprometida com a realidade da relação médico-paciente, bem como com a inovação de forma responsável. Este documento, antes de apresentar seus artigos, deixa expressamente consignadas as seguintes considerações, dentre outras: “que a despeito das consequências positivas da telemedicina existem muitos preceitos éticos e legais que precisam ser assegurados; que a telemedicina deve favorecer a relação médico-paciente; (…) que o médico que utilizar a telemedicina sem examinar presencialmente o paciente deve decidir com livre arbítrio e responsabilidade legal se as informações recebidas são qualificadas, dentro de protocolos rígidos de segurança digital e suficientes para emissão de parecer ou laudo; (…) que o registro digital para atuar por telemedicina deve ser obrigatório e confidencial nos termos das leis vigentes e dos Princípios de Caldicott (2013), do National Health Service (NHS), que definem: I – que seu uso deve ser necessário, justificado e restrito àqueles que deles precisem; II – que todos aqueles que os utilizem devem ser identificados, estar conscientes de sua responsabilidade e se comprometer tanto a compartilhar como a proteger os dados e informações a que tiverem acesso e forem colocados à disposição dos médicos ou anotados em Sistemas de Registro Eletrônico/Digital de Saúde; (…).”.
Pois bem, em seu esclarecedor art. 4º a Resolução em comento nos informa que a teleconsulta- que é a consulta médica remota, mediada por tecnologias, com médico e paciente localizados em diferentes espaços geográficos- subentende como premissa obrigatória o prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente, além disso, prevê que em atendimentos por longo tempo ou de doenças crônicas, é recomendado consulta presencial em intervalos não superiores a 120 dias e que o teleatendimento deve ser devidamente consentido pelo paciente ou seu representante legal e realizado por livre decisão e sob responsabilidade profissional do médico.
Este art. 4º prevê ainda que o estabelecimento de relação médico-paciente de modo virtual é permitido para cobertura assistencial em áreas geograficamente remotas, desde que existam as condições físicas e técnicas recomendadas e profissional de saúde e que, em caso de participação de outros profissionais de saúde, estes devem receber treinamento adequado, sob responsabilidade do médico pessoa física ou do diretor técnico da empresa intermediadora.
Em seguida, o art. 5º desta mesma resolução determina que, nas teleconsultas são obrigatórios os seguintes registros eletrônicos/digitais: I – identificação das instituições prestadoras e dos profissionais envolvidos; II – termo de consentimento livre e esclarecido; III – identificação e dados do paciente; IV – registro da data e hora do início e do encerramento; V – identificação da especialidade; VI – motivo da teleconsulta; VII – observação clínica e dados propedêuticos; VIII – diagnóstico; IX – decisão clínica e terapêutica; X – dados relevantes de exames diagnósticos complementares; XI – identificação de encaminhamentos clínicos; XII – produção de um relatório que contenha toda informação clínica relevante, validado pelos profissionais intervenientes e armazenado nos Sistemas de Registro Eletrônico/Digital das respectivas instituições; e XIII – encaminhamento ao paciente de cópia do relatório, assinado pelo médico responsável pelo teleatendimento, com garantia de autoria digital.
Pelo exposto, verifica-se claramente que o dever de informação, já comentado, por parte do médico é de suma importância e deve obrigatoriamente fazer parte da conduta deste profissional na relação médico-paciente.
Nesse sentido, em geral, recai sobre o médico a prova de que todas as informações foram, de fato, prestadas ao paciente e de que este consentiu com o tratamento e diretivas propostas. Por esse motivo, não é incomum- é até mesmo altamente recomendado- que os médicos entreguem aos seus pacientes um documento escrito contendo as informações a ele prestadas, bem como formalizando seu consentimento em relação à proposta de tratamento; procedimentos a serem empregados.
O retro citado documento recebe o nome de “termo de consentimento informado” e seu uso- até mesmo como medida preventiva- deve ser estimulado, eis que possui importante valor probatório em caso, por exemplo, de demandas reparatórias.
Ora, imaginemos uma situação em que o paciente ajuíza uma ação indenizatória requerendo reparação de danos sob o argumento de que, em decorrência de determinada cirurgia proposta e realizada pelo médico, fora acometido por certa sequela.
Nesse caso, se o médico tiver de posse do termo de consentimento informado, contendo todos os esclarecimentos prestados ao paciente, poderá utiliza-lo como prova que o informou devidamente acerca da possibilidade da ocorrência de tal sequela e que este, mesmo assim, comprovadamente (assinatura do paciente no documento com as devidas formalidades), decidiu pela realização do tratamento; cirurgia proposta.
Desse modo, o médico se mune de um forte elemento probatório em sua defesa e ainda atua em conformidade com o princípio da boa-fé objetiva, do dever de informação e da aplicação de todos os meios legais para melhor execução de seu mister.
A título de curiosidade, no Direito do Consumidor há um instituto conhecido como inversão do ônus da prova previsto no art. 6º, VIII, do CDC, segundo o qual: “são direitos básicos do consumidor: (…) VIII- A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.”.
Verifica-se ter o legislador conferido ao arbítrio do Juiz, de forma subjetiva, a incumbência de, presentes o requisito da verossimilhança das alegações ou quando o consumidor for hipossuficiente (vulnerabilidade que pode ser de ordem financeira, técnica, informacional, jurídica; científica, fática ou socioeconômica), poder inverter o ônus da prova, ou seja, determinar, nesse caso, que a parte requerida (hipoteticamente o médico) traga aos autos provas daquilo que se alega.
É claro que, conforme já anteriormente exposto, para a configuração da responsabilidade civil do médico profissional liberal, em geral, é necessária a prova do elemento culpa por parte daquele que reclama reparação de dano, por exemplo. No entanto, é importante ter sempre em mente a existência deste instituto da inversão do ônus da prova, como encorajador de medidas preventivas, eis que pode ser aplicado em diversas situações.
Por fim, independente da situação e/ou caso analisado pelo médico, este profissional deve ter sempre em mente o que preceitua o art. 2º da Lei nº 12.842/2013, a qual dispõe sobre o exercício da Medicina, vejamos: “O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.”.
Autora: Elisa Zafalão – Advogada, graduada pela Universidade Federal de Goiás – UFG e Pós-Graduanda em Direito Público pela Instituição Damásio Educacional, atuante nas áreas Cível e Administrativo. Email: elisazafalao@gmail.com.
A advogada Elisa Zafalão escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna da Zafalão”.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal da colunista, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.
[1] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 10. Ed. São Paulo: Atlas, 2010. P. 149.