Acredito que sou um privilegiado. Vou explicar. Um famoso filósofo moderno descreve o “profeta fora de hora”, ou seja, aquele que só prevê depois que acontece e diz peremptoriamente – “Eu sabia que isto iria acontecer!” Se sabia, porque não falou antes!?
Sou formado há 24 anos e como os últimos 21 foram dedicados quase que exclusivamente ao mundo corporativo, há pelo menos 20 anos falamos em ações de promoção da saúde, prevenção de doenças e atenção primária como formas de controlar a escalada de custos com saúde, principalmente nas empresas, que hoje bancam mais de 70% dos planos de saúde. Já prevíamos e propúnhamos soluções antes de chegarmos ao ponto que chegamos.
Não sou um privilegiado, mas sim “obviolado”. Era óbvio que esta conta não iria fechar, era óbvio que se não fizéssemos nada a escalada de doenças crônicas não transmissíveis tomaria a dimensão atual e o óbvio “ululante” (este termo não é meu), nossa população está envelhecendo! Só para exemplificar, dados recentes do VIGITEL mostraram que o número de obesos cresceu 68% entre 2006 e 2018. No mesmo período, a população diabética cresceu 40%. Hoje, no Brasil, 7,7% da população tem diabetes. Voltando a obesidade, outro dado alarmante, ela é mais prevalente na população de baixa renda. Recentemente atendi uma funcionária obesa, com baixa escolaridade e com grande dificuldade de entender que suas queixas de artralgia nos joelhos, lombalgia, entre outras, estavam relacionadas a obesidade. Por fim eu disse a ela: “Como seria sua reação se eu informasse, supostamente é claro, que a senhora está com câncer?” Ela disse: “Eu ficaria apavorada”! Reforcei com a seguinte comparação: “A obesidade hoje pode ser comparada a um câncer no seu corpo!” Ela entendeu.
De um lado o setor público, universal, gratuito (não concordo com o gratuito, pois temos uma das maiores cargas tributárias do mundo) e para muitos considerado o “modelo ideal” e de outro o privado com recursos e tecnologia de ponta, porém totalmente inacessível à maioria da população. A tecnologia, especialmente na saúde, acentua as desigualdades por mais paradoxal que seja.
Quanto mais desenvolvimento tecnológico incorporado nos equipamentos e medicamentos, menos acessível ele será para a grande maioria da população. Um laboratório farmacêutico irá investir na fabricação de penicilina ou em terapias gênicas? Um detalhe importante, segundo a OMS a cada US$ 1 investido pela indústria farmacêutica na pesquisa e desenvolvimento há um retorno de U$S 14. Espero que a indústria continue sendo lucrativa, mas temos que pensar numa forma de acesso para no mínimo, boa parte da população.
Esta polarização da assistência à saúde (SUS x Particular) tem como uma das consequências o fenômeno das clínicas particulares de baixo custo. Menos pessoas com plano de saúde, SUS com longas filas de espera, fez com que esta população procurasse alternativas. Lei da oferta e demanda. Outras possíveis consequências, podemos esperar o fim das deduções dos gastos com saúde no Imposto de Renda (extraordinários R$ 20 bi em 2018) e o fim da gratuidade do SUS?
O orçamento do Ministério da Saúde em 2019 é de R$ 132,8 bilhões. Em 2018 o SUS realizou 20 milhões de procedimentos radioterápicos, 99 mil cirurgias e bancou 42.915 equipes de saúde da família. Além do gasto da União, se somarmos os gastos dos Estados e Municípios, em ações e serviços de saúde, cada brasileiro consome R$ 3,48 ao dia, ou seja, R$ 1.270,00 ao ano, algo em torno de US$ 300. No Reino Unido, com sistema universal e gratuito, o valor foi de US$ 3.500 ao ano! Sei que estou comparando alhos com bugalhos, mas não custa sonhar.
Em relação a Atenção Primária foco deste artigo, confesso que estou confuso. Quando vamos ao pé da letra e propomos ações clássicas da Atenção Primária e não realizamos atendimento para as pequenas queixas do dia a dia, como cefaleia, diarreia, cólica menstrual, gripes, resfriados, amigdalites, somos criticados pelas empresas, pagadoras pelos serviços. Quando resolvemos fazer os dois, somos criticados pelos “especialistas” no assunto. Recentemente participei de um seminário sobre o assunto e quando um dos participantes perguntou sobre o retorno financeiro da Atenção
Primária, quase foi “agredido” pelo palestrante (internacional) que afirmou: “O retorno financeiro não é o foco da APS!” Então o que é? Quem paga esta conta que é altíssima? A medicina do trabalho brasileira já tem seu espaço estratégico garantido nas empresas e não precisa dar resultado? Claríssimo que não.
Lembro de ter participado de uma grande campanha de vacinação contra gripe em São Paulo e o diretor da empresa falou: “Já fizemos campanhas de gripe que faltaram vacinas, outras que sobraram. Qual é a pior?” Respondi: “Pior é não fazer!” É claro que combatemos desperdícios provocados, muitas vezes, por um planejamento inadequado, mas vejo esse fato ocorrer diariamente na Medicina do Trabalho, pois é sempre mais fácil não fazer.
As empresas, grandes financiadoras da saúde, deixarão de ser meras intermediárias de serviços para gestoras da saúde dos funcionários, pois as operadoras já estão agindo com a verticalização, remuneração focada em performance, coparticipação, atenção básica e prevenção. Este será mais um papel, que nós médicos dos trabalhos e profissionais de saúde precisaremos ser protagonistas.
Autor (a): Dr. Eduardo Arantes – Dr. Eduardo Ferreira Arantes (SP): Médico com especialização em Medicina do Trabalho pela Universidade São Francisco de São Paulo, Ergonomia pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e em Gestão de Saúde pela FGV. Autor dos livros: O Retorno Financeiro de Programas de Promoção da Segurança, Saúde e Qualidade de Vida nas Empresas, Ciências da Vida Humana e o recém-lançado Crônicas de Saúde, Ciência e Cotidiano. Atualmente é Diretor Técnico Comercial na TEG Saúde.
O Dr. Eduardo Arantes escreve mensalmente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Edu”.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Eduardo Arantes, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.