Em recente decisão de 1o. Instância, da qual ainda cabe recurso, o Ministério Público do Trabalho obteve decisão favorável a seu pleito de declarar a nulidade dos atos do Conselho Federal de Medicina que permitiam aos médicos do trabalho utilizarem os dados do prontuário médico ocupacional nas contestações do NTEP, na defesa das Empresas. A mesma decisão proíbe que o CFM edite novos atos neste sentido.
Qual o fundamento de tal decisão? O Poder Judiciário parece até o momento ter reconhecido nos atos do CFM uma conduta ilegal de autorização para os médicos brasileiros violarem o sigilo de informações íntimas do trabalhador.
Com a devida vênia, não há como concordarmos com tal decisão.
Primeiramente, entendo que não há violação de sigilo médico em tal prática, uma vez que tais informações são direcionadas a perícia médica do INSS, hoje denominados Peritos Médicos Federais com a única finalidade de auxiliar a investigação da relação causal, que é presumida pelo NTEP.
Estas informações não se tornam públicas, pois são direcionadas a outros médicos. Aceitar que esta troca de informações é uma violação à intimidade do trabalhador afronta todos os princípios e preceitos da Perícia Médica, além de prejudicar o direito de defesa da Empresa cuja presunção do NTEP lhe imputa o ônus da prova para sua descaracterização.
E quando o Perito Médico Federal solicita informações ao médico do trabalho ou ao médico assistente através da Solicitação de Informações ao Médico Assistente? Ocorre uma violação ao sigilo por acesso a informações íntimas dos trabalhadores? Cumpre frisar que existe, inclusive, previsibilidade legal para tanto no artigo 170, parágrafo único, do Decreto 3048/99.
O processo administrativo no INSS não é um processo público que qualquer pessoa tem acesso, não basta chegar no balcão de uma agência do INSS e solicitar vistas. Sabemos que as coisas não funcionam desta forma.
Além disto, ainda se fosse, bastaria que o próprio INSS garantisse o sigilo destes dados para que não houvesse qualquer possibilidade de violação do sigilo médico do segurado. Entendo que isso já é garantido, todavia se o MPT estava preocupado com esta questão, que garantisse que fossem tomadas iniciativas a fim de verificar isto, ao invés de impedir que a Empresa exerça seu direito legal de defesa.
E não seria possível contestar o NTEP sem utilizar as informações dos prontuários médicos ocupacionais? Claro que é.
Porém, em alguns casos, o argumento para contestação fica frágil tecnicamente. Se tomarmos, por exemplo, um acidente com lesão ortopédica ocorrido em ambiente extra-laboral: no prontuário ocupacional consta que o trabalhador informou que caiu jogando futebol no sábado. O INSS enquadra como B-91 ao invés de B-31. Como contestar isso?
A empresa terá que demonstrar que o acidente não ocorreu em suas dependências, mas isso não será fácil e, pode ser, tecnicamente frágil.
A decisão em comento, para mim, fere o sistema criado pelo NTEP, que, em sua concepção, inverteu o ônus da prova, uma vez que faz uma presunção de nexo técnico através de epidemiologia, cabendo a empresa demonstrar que aquele vínculo causal não existe. Com esta decisão está sendo retirada da empresa uma das formas de provar a inexistência desta relação. Isto torna a prova muito difícil e onerosa.
O NTEP é uma presunção de relação causal, baseada em critérios e cálculos criticáveis e duvidosos, sem considerar diversas nuances que envolvem a ciência médica. Para sua descaracterização o Perito Médico Federal deve ter acesso a informações sobre o trabalhador. Impedir isto é atrapalhar o funcionamento do sistema.
Por derradeiro, temos uma nova informação que, provavelmente, não foi considerada no início da presente ação do MPT contra o CFM: a diferença de valores entre alguns benefícios acidentários e os de natureza comum.
Com a Reforma da Previdência Social criou-se uma significativa diferença nos valores dos benefícios Auxílio-Acidente e Aposentadoria por Incapacidade Permanente a depender da natureza da doença, sendo os valores muito maiores caso a doença seja de natureza acidentária.
Diante disto, existe agora, inegável interesse público na definição correta da natureza da doença, uma vez que um benefício de natureza acidentaria concedido indevidamente acarretará maior onerosidade para o Sistema Previdenciário. Não estou aqui fazendo juízo sobre isto ser justo ou não, apenas constatando um fato que está posto na legislação.
Cai por terra, desta forma, a justificativa de que a definição da natureza do benefício e a contestação do NTEP atendem apenas aos interesses econômicos das empresas, em razão da maior tributação pela concessão de tais benefícios.
É de interesse de toda a sociedade que os benefícios sejam concedidos de forma correta, não apenas do particular, no caso, a empresa.
Quando vejo estas questões sempre me pego pensando: qual o medo da verdade? É justo alguém receber um benefício indevidamente e uma empresa pagar mais tributos indevidamente havendo uma informação que pode esclarecer o caso e mudar o enquadramento?
Cabe a cada um fazer uma reflexão sobre o tema, a minha está feita.
Autor: Dr. João Baptista Opitz Neto – Médico do Trabalho, Mestre em Bioética e Biodireito pela UMSA/AR; Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas; Especialista em Ergonomia; Perito Judicial / Assistente Técnico nas áreas trabalhista, cível e previdenciária. Autor do livro “Perícia Médica no Direito” (Editora Rideel); Colunista do portal SaudeOcupacional.org; Professor e Palestrante nas área de Pericia Médica, Medicina do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho; Diretor do Instituto Paulista de Higiene, Medicina Forense e do Trabalho.
Obs.: o texto acima é de autoria do colunista João Baptista Opitz Neto, e não reflete a opinião institucional do SaudeOcupacional.org.