Após o reconhecimento da pandemia decorrente do surto da doença Covid-19, ocasionada pelo novo coronavírus, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou fortemente o distanciamento social horizontal entre pessoas sãs, o isolamento das pessoas suspeitas de portarem o SARS-CoV-2 e a restrição de atividades em geral (quarentena), com o claro objetivo de salvar vidas.
Tais medidas têm sido adotadas gradativamente pela grande maioria dos países e vão desde o fechamento de escolas, shoppings, academias e comércio em geral até a restrição da circulação de pessoas nas ruas. Principalmente na Europa, em cidades italianas, espanholas e alemãs, a população está autorizada a sair de casa apenas para comprar alimentos, medicamentos ou ir ao hospital, por vezes em sistema de revezamento. Embora as diferentes condutas estabelecidas por governos de países, por estados ou cidades gerem opiniões controversas acerca de seu rigor ou insuficiência, um aspecto é indiscutível: precisamos de que os trabalhadores das denominadas atividades essenciais continuem trabalhando em prol da sobrevivência de todos, especialmente para tratarem as vítimas da Covid-19.
Merecem destaque entre esses trabalhadores, em razão de sua maior exposição ao novo agente viral, os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas), do ramo de alimentação, de segurança, de transporte, de telecomunicações, em serviços funerários e de tratamento de água, esgoto e lixo.
Medidas de proteção a serem adotadas por empregadores
Daí porque medidas tendentes a evitar a propagação da Covid-19 nos locais de trabalho têm merecido especial atenção de diversos organismos internacionais além da OMS, com destaque para a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo a OIT, trabalhadores e suas famílias devem ser protegidos dos riscos à saúde ocasionados pela Covid-19 no local de trabalho. Para a OIT, é de se exigir uma postura responsável das empresas, cabendo aos empregadores monitorar constantemente as orientações fornecidas por autoridades no assunto, visando ao fornecimento de informações corretas aos trabalhadores e à adoção de medidas que evitem o contágio desses trabalhadores com o novo coronavírus.
Nesse cenário, as decisões dramáticas relativas a escolher entre quem deve viver ou morrer, relatadas por médicos europeus diante do gradual colapso dos sistemas de saúde dos seus países, poderiam ser evitadas, em alguma medida, em momento anterior a esse. Na verdade, esse dilema já surge quando hospitais (públicos e privados), supermercados, farmácias, empresas de transporte, inclusive desenvolvedoras de aplicativos com essa finalidade, ou quaisquer outros empregadores, decidem preservar ou não seus trabalhadores em grupos de risco (imunodeficientes, idosos, diabéticos, hipertensos, asmáticos) quando os submetem ao transporte coletivo ou privado, ou então quando decidem fornecer ou não equipamentos de proteção individual (EPIs) suficientes (álcool em gel, óculos, protetores faciais ou viseiras, capotes impermeáveis, gorros) e ambientes apropriados (lavatórios e distanciamento entre os postos de trabalho). Além disso, a adoção de jornadas de trabalho não exaustivas e em conformidade aos limites constitucionalmente estabelecidos também configura importante medida protetiva a ser considerada pelos empregadores.
Particularmente para os profissionais de saúde que atuam heroicamente no combate direto ao SARS-CoV-2, os EPIs são as únicas proteções possíveis para se evitar a contaminação, especialmente porque esses trabalhadores não podem distanciar-se socialmente e lidam com pacientes com alta carga viral. No entanto, denúncias da Associação Médica Brasileira e do Conselho Federal de Enfermagem apontam que o Brasil já tem mais de oito mil registros de falta de EPI. O quadro se agrava diante do fato de que a utilização de EPIs não constitui garantia de neutralização de acidentes ou adoecimentos ocupacionais.
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais à saúde, à vida e ao meio ambiente laboral hígido
Em relação à responsabilidade dos empregadores em razão do adoecimento ocupacional dos trabalhadores pela Covid-19, um primeiro e importante aspecto jurídico a destacar é que os preceitos consagradores dos direitos, liberdades e garantias fundamentais não se dirigem exclusivamente ao Estado. A eficácia desses direitos deve ser observada também entre trabalhadores e empresas.
Com efeito, a partir da elaboração de normas constitucionais a estabelecerem pautas sociais e orientarem a atividade econômica dos atores privados, fixando marcos mínimos de proteção, o Estado dessacralizou a autonomia privada e a propriedade, estabelecendo matérias de ordem pública (como, por exemplo, a vida e a integridade psicofísica dos trabalhadores e o dever de preservação do meio ambiente), a justificarem a limitação à livre estipulação contratual e o desempenho de atividades econômicas lesivas àqueles bens jurídicos. Não fosse a incidência das normas constitucionais nas relações jurídicas privadas, as conquistas seculares do Direito Público, que produziram sucessivos direitos e garantias do cidadão perante o Estado, tornar-se-iam inoperantes para as transformações sociais pretendidas.
Em luminar artigo a respeito do tema, Zeno Simm lembra que o ambiente de trabalho se mostrou propício à chamada horizontalização dos direitos fundamentais (ou eficácia dos direitos fundamentais entre particulares), pois “ali, pela própria natureza da relação contratual, o empregado abre mão de uma parte de suas liberdades, na medida em que se coloca a serviço do empregador, subordinado a este e por ele controlado e fiscalizado. Quando, porém, a atuação patronal extrapola os limites do razoável, do aceitável, do necessário ao desenvolvimento das atividades empresariais, entram em ação os direitos fundamentais do trabalhador como limitação do poder empresarial…”. Desse modo, o contrato de trabalho contribuiu para a mudança dogmática dos direitos fundamentais, que deixaram de ser oponíveis somente ao Estado, para o serem também no âmbito das relações privadas.
De outro lado, o Estado não deve ficar de mãos atadas diante da livre iniciativa, sendo impelido, por vezes, a coibir abusos ou até mesmo a limitar tal exercício em determinadas circunstâncias, a fim de evitar o sacrifício de outros valores e princípios constitucionais relevantes. Nesse contexto, cumpre ressaltar o papel relevante que vem sendo desempenhado por sindicatos de categorias profissionais e pelo Ministério Público do Trabalho no ajuizamento de ações civis públicas com pedidos de obrigação de fazer quanto ao fornecimento de EPIs ou para afastamento de trabalhadores em grupos de risco do trabalho.
A caracterização da Covid-19 como doença profissional ou do trabalho e a responsabilidade dos empregadores
Dito isso, é de se indagar a respeito da responsabilização indenizatória dos empregadores no contexto da pandemia e do adoecimento ocupacional dos trabalhadores, ou ainda, se a Covid-19 pode ser caracterizada como doença profissional ou do trabalho.
A OIT já se manifestou acerca da possibilidade de caracterização da Covid-19 como doença profissional, como têm feito alguns países. E, de fato, à luz da interpretação sistemática da legislação brasileira, a Covid-19 pode ser caracterizada como doença ocupacional (ou profissional) caso o adoecimento seja desencadeado pelo exercício do trabalho característico à função ou profissão desses trabalhadores, mais comum na situação dos profissionais de saúde, ou ainda como doença do trabalho, quando causada pelo meio ambiente do trabalho ou pelas condições a que o empregado é exposto.
Em ambos os casos, o empregado doente deverá ser indenizado pelo empregador, seja em decorrência da responsabilidade pela atividade de risco (classificada como objetiva), que se caracteriza pela natureza da atividade laboral e pelo trabalho em situações em que o dano é previsível, seja em face da responsabilidade pela culpa ou dolo do empregador (classificada como subjetiva), existente nos casos em que o empregador deixa de cuidar de modo eficaz do ambiente laboral, por imprudência, imperícia ou negligência, como em decorrência da ausência ou fornecimento insuficiente de EPIs.
Nesse sentido, a Constituição de 1988 consagra, no artigo 7º, inciso XXVIII, a responsabilidade do empregador pelo dano que causar ao trabalhador, mediante comprovação de dolo ou culpa. O Código Civil, por sua vez, no parágrafo único do artigo 927, prevê a responsabilidade objetiva do autor do dano nos casos de atividade de risco ou quando houver expressa previsão legal, situação em que não é necessária a comprovação de dolo ou culpa. A regra civilista é perfeitamente aplicável às relações trabalhistas, como amplamente reconhecido pela Justiça do Trabalho.
Destaque-se, aliás, que muito recentemente o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade do dispositivo do Código Civil (artigo 927, parágrafo único) que garante ao trabalhador o direito à indenização em razão de danos decorrentes de acidente de trabalho ou adoecimento ocupacional, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do empregador, se a atividade é considerada de risco (responsabilidade objetiva). Seja como for, a responsabilidade do patrão nos casos de acidente de trabalho ou adoecimento ocupacional sempre existiu em qualquer situação de culpa (negligência, imperícia e imprudência).
Assim, embora a Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, em seu artigo 29, tenha pretendido excluir a natureza ocupacional das contaminações por SARS-Cov-2 ocorridas no ambiente de trabalho de modo apriorístico e abstrato, a norma mostra-se incompatível com os artigos 7º, XXII, e 225 da Constituição de 1988. No contexto da pandemia vivenciada, em que o contágio se dá pelo ar e de modo invisível, é de se presumir que as atividades desempenhadas por profissionais de saúde, por exemplo, representam risco especial a esses trabalhadores.
Portanto, há forte embasamento jurídico a sustentar que a responsabilidade do empregador existente no caso de adoecimento por Covid-19 dos profissionais de saúde e em quaisquer outras atividades essenciais é objetiva. Isso porque o risco da atividade desempenhada por tais trabalhadores é inerente ao fato de ser necessário, em suas funções ordinárias, o trato frequente com pessoas contaminadas com o novo coronavírus, num contexto de pandemia.
Epílogo
Como se sabe, o heroísmo é uma categoria social antiga. Considera-se herói quem age independentemente da opinião pública, com coragem e determinação, mesmo nas piores adversidades, apesar das consequências que possa vir a sofrer. Na antiguidade, estava atrelado ao uso da força. A tradição judaico-cristã alterou a concepção de heroísmo, ao concebê-lo como um processo diário e oculto de sacrifício em favor de outrem, desapegado das aparências do mundo.
Aos trabalhadores chamados a enfrentar a Covid-19, direta ou indiretamente, conforme a profissão que abraçaram ou o emprego que conseguiram obter, inclusive mediante a realização de trabalho extraordinário a qualquer hora do dia ou da noite, é devido mais que a alcunha de heróis e o reconhecimento por meio de aplausos da sociedade. Eles merecem, preventivamente, o gozo de toda proteção a que fazem jus, não apenas em decorrência dos direitos constitucionalmente assegurados acima mencionados, mas, assim como a pequena paz de consciência de saberem que seus filhos e filhas, maridos e esposas, apesar de suas ausências, receberão justa compensação em decorrência de seu altruísmo, se vierem a falecer no campo de batalha. O ordenamento jurídico brasileiro, felizmente, assegura-lhes esses direitos, ainda que alguns empregadores ou governantes possam vir a querer descumpri-los, o que nos faz recordar a famosa frase de Lacordeire: “Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”.
Fonte: Conjur.com.br