07 jul 2020

Todo médico sabe CIF

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O médico sabe as repercussões que as doenças têm sobre as pessoas. Se não souber não é digno da profissão. Sabe como ninguém mais. E sabe porque dedica sua vida a combater os sofrimentos que causam. Razão de ser da medicina. Como ensina o mestre Mario Jorge Tsuchiya, o médico é especialista em gente.

Descrever essas repercussões através de códigos alfanuméricos é o propósito da Classificação Internacional de Funcionalidades (CIF). Logo, todo médico sabe CIF, mesmo que não tenha consciência desse saber.

A CIF nasce com as virtudes e mazelas das classificações. Por um lado, permite a uniformização da linguagem e assim permite comparações, avaliar evolução, fornece dados estatísticos que subsidiam formulação de políticas coletivas, etc. Entretanto falha em aprisionar a alma humana, suas nuances e particularidades, tão conhecidas do médico. Propõe-se a identificar o que seja saúde. Esse ambicioso objetivo permite antever sua complexidade e antecipa certa insuficiência que de fato se verifica.

O médico sabe as repercussões que as doenças têm sobre as pessoas. Se não souber não é digno da profissão. Sabe como ninguém mais. E sabe porque dedica sua vida a combater os sofrimentos que causam. Razão de ser da medicina. Como ensina o mestre Mario Jorge Tsuchiya, o médico é especialista em gente.

Vem completar a CID (Classificação Internacional de Doenças), sua irmã mais simples e prática. Ao receber um CID as pessoas vão à internet e descobrem o nome de uma patologia. De igual forma permite comparações e fornece importantes dados epidemiológicos.

O médico conhece as doenças pelo nome, pelo nome e sobrenome, conhece sua família, parentes, semelhantes, tipos e subtipos. Chega a atribuir-lhes abreviaturas íntimas, como “Tb”, “Ca”, “Neo”. Sabe perfeitamente as mazelas de cada uma delas, seu poder de destruir indivíduos, famílias e até mesmo comunidades. Quando preenche o prontuário se depara com a exigência do CID. Aí vai à internet e descobre o código alfa numérico do mal que tão bem conhece. Se a tarefa consumir cinco minutos por paciente subtrairá duas horas e meia do tempo que deveria ser dedicado ao que sofre, uma vez que no caótico sistema brasileiro de atendimento à saúde, poucos atendem menos que trinta pessoas por dia. Mesmo que consumisse menos, é um tempo precioso demais para ser subtraído do contato com os pacientes. Eis o motivo do preenchimento da CID ser falho. O médico não desconhece sua importância, sabe inclusive que isso o prejudica nas avaliações que os leigos administradores dos sistemas de saúde fazem de sua “performance”, das implicações que isso pode ter em sua própria defesa. Não é ignorância, tão pouco displicência ou descaso como se costuma ouvir. É, antes de tudo, mais uma opção que o médico faz pelo ser humano que sofre. E continua a repetir essa escolha diariamente apesar de ter plena consciência que isso pode prejudicá-lo.

Agora, com o objetivo de definir o que é saúde, vem a CIF, onde o sofrimento do ser humano é descrito através de muitos códigos alfa numéricos (XXXXXX de 3 a 36XXXX). Diante do perplexo médico, o bom samaritano certamente se prontificaria a esclarecê-lo:

– É simples, o ser humana deve ser classificada em quatro grandes áreas, a primeira é seu corpo, a segunda é a …..

– Desculpe, sua explicação está muito interessante, mas tem um paciente na sala ao lado, diabético*, 55 anos, usa altas doses de insulina*, semianalfabeto⁰, trabalhador rural⁰, não consegue aplicar corretamente a medicação devido as condições do local de trabalho⁰, com um mal perfurante plantar *⁰ com infecção importante*. Preciso lutar para conseguir uma vaga⁰, saber se o hospital tem os antibióticos adequados⁰ e fazer o desbridamento o mais rápido possível. Existe risco de ter o pé amputado*⁰, terá dificuldade de locomoção⁰, não poderá mais trabalhar⁰, nem sei se é segurado da previdência⁰, mesmo que consiga se aposentar terá dificuldades de auto estima , talvez perca o respeito da sociedade por se tornar aleijão⁰, pode ser considerado relaxado por não ter aplicado corretamente a medicação⁰, a esposa pode perder o interesse⁰, você sabe, há muito em jogo. Preciso conseguir a vaga e desbridar……

Cada símbolo (*) mostra uma doença cujo nome poderia ter sido substituído por um código alfanumérico da CID. O símbolo (⁰) mostra um reflexo, uma consequência, um sofrimento, que poderia ter sido substituído por um código alfa numérico da CIF. Alguns desses reflexos inclusive não são classificados na CIF, incluindo os reflexos negativos, sofrimento, que as patologias, o contexto social e o sistema de atendimento à saúde geram no médico.

A CIF, como todas as outras classificações, nada criam, limitam-se a padronizar a linguagem e agrupar semelhantes, permitindo comparações, evolução e informações epidemiológicas sobre a saúde e suas consequenciais. Dito de outra forma, a CIF tão somente descreve, através de códigos alfa numéricos, o dia a dia do médico, do seu material de trabalho, da essência de sua profissão. Por isso todo médico sabe CIF, ainda que não tenha consciência disso.

No campo pericial frequentemente os leigos cometem o erro conceitual ao declaram-se capazes de avaliar o dano corporal através da CIF. Entretanto a CIF não avalia o dano corporal, a CIF tão somente descreve através de códigos alfanuméricos o dano identificado pelo médico. O segundo erro conceitual  cometido pelos leigos em medicina consiste em afirmar que o médico deve se limitar a avaliar o dano anatômico fisiológico. Tal engano conceitual não surpreende pois é emitido por leigos. O que gera perplexidade é o ar de autoridade que assumem ao declará-lo. Declaram seu desconhecimento do assunto como virtude. A magnitude desse engano pode ser constatada pela célebre frase hipocrática: É mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que a doença que a pessoa tem”. Esses erros conceituais remetem a outro ensinamento do mesmo mestre: Há verdadeiramente duas coisas diferentes: saber e crer que se sabe. A ciência consiste em saber, em crer que se sabe reside a ignorância”.

Por óbvio, se no contexto assistencial o conhecimento das consequências que os males tem sobre o indivíduo permite tratar o paciente e não a doença, sendo o tratamento dessa apenas um dos meios, no campo pericial é importante dar ao julgador a exata noção do dano sofrido, o que certamente não se limita à descrição anátomo-fisiologia da lesão. Da mesma forma, somente a capacidade de estabelecer diagnóstico associada ao conhecimento da etiopatogenia, da história natural da doença, do prognóstico, dos diversos fatores envolvidos (pessoais, familiares, de trabalho e de suporte social) permitem dar ao magistrado as bases necessárias para estabelecer se houve dolo ou culpa, em qualquer de seus graus. A solitária função do julgador necessita de informações solidas nas quais possa se basear.  O ser humano não é um conjunto de dobradiças.

Conhecer a história é fundamental para entender o presente. Paralelamente à longa elaboração e aperfeiçoamento da CIF, a União Europeia, ainda na condição de Mercado Comum Europeu, iniciou intenso trabalho de harmonização da avaliação do dano corporal considerando as diferentes legislações europeias. Isso permitiu a elaboração e estabelecimento de metodologia pericial amplamente aceita. Os fundamentos da CIF foram incorporados à avaliação pericial e são apresentados aos julgadores através de descrições claras e objetivas de vários domínios da vida tais como o trabalho, a vida familiar, social, esportes e lazer, atividade sexual, capacidade reprodutiva, alteração estética e psíquica, necessidade de tratamentos futuros e, em alguns casos, os custos envolvidos. Aborda ainda os danos não incorporados na CIF como os danos temporários e os que representam desvantagens permanentes tais como a esplenectomia.

Tal complexidade de avaliação faz com que a União Europeia defina não bastar ser médico para estar capacitado a avaliar dano corporal e nexo causal. É necessário treinamento e conhecimento específico. Na França a exigência de treinamento específico do médico remonta ao fim do século dezenove (XIX). Tal complexidade fez com que o Conselho Federal de Medicina criasse, em 2011, a especialidade em perícia médica sob a denominação de Medicina Legal e Perícia Médica.

Todo médico sabe CIF, ainda que não tenha consciência desse saber. Só o médico com treinamento específico ou larga experiencia em perícia está capacitado para avaliar adequadamente nexo e dano corporal.

Autor: Dr. Marcos Alvarez – Médico, formado na FAMERP em 1984, cirurgião geral via residência médica, Médico Endoscopista (SOBED/AMB), Médico do Trabalho (ANAMT/AMB), especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas (ABMLPM/AMB). É Pós-Graduado em Ergonomia. Possui experiência na área pericial de mais de 20 anos de atuação.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do autor, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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