Dividir a vida em diferentes compartimentos se tornou mais difícil no momento em que a reclusão, o trabalho remoto e o aumento de demandas se tornaram tônicas da pandemia da Covid-19. Esse contexto coincidiu com a adição do burnout à nova classificação internacional de doenças e problemas associados à saúde (CID-11), no início deste ano, e com a difusão do termo.
No entanto, em uma rotina cada vez menos repartida, a questão é definir as causas do sofrimento – requisito central para a Justiça do Trabalho -. Trata-se de algo complexo no caso de transtornos e sofrimentos mentais, em que os fatores se somam e se justapõem.
Apesar de estar associado ao trabalho na CID, organizado pela Organização Mundial de Saúde para nortear a identificação de questões de saúde e as estatísticas delas, o burnout não é considerado uma doença, portanto não é uma condição médica – ele é elencado entre fatores que impactam a saúde.
Nessa lógica, se trata uma síndrome que resulta de estresse crônico no ambiente de trabalho. É caracterizada pela sensação de esgotamento de energia ou exaustão, sentimentos negativos relacionados ao emprego, senso de ineficiência ou falta de realização. A CID encaixa o burnout especificamente no contexto ocupacional, e ela não poderia ser usada para descrever situações fora dele, segundo a orientação.
“O fato de constar na CID não significa que o burnout seja doença. Para dar uma ideia, problemas como sedentarismo, pobreza ou ameaça de perda de emprego estão na mesma categoria. Então, do ponto de vista da CID-11, dizer que há um diagnóstico de burnout é o mesmo que dizer que há um diagnóstico de pobreza ou sedentarismo; identifica uma situação, não uma doença”, explica Daniel Barros, psiquiatra forense do Instituto de Psiquiatria (IPq), do Hospital das Clínicas da USP.
Porém, para a Justiça brasileira, a síndrome do burnout consta na lista de doenças relacionadas ao trabalho, ao estar presente em portaria de 1999 do Ministério da Saúde, por exemplo. O esgotamento pelo trabalho já era levado em consideração em disputas trabalhistas – agora, com mais conhecimento sobre a condição, se espera que o volume de casos aumente, assim como as situações limítrofes.
Diagnóstico de burnout
Ainda que tenha relação ocupacional, o diagnóstico, por si só, também não é suficiente para o trabalhador ou trabalhadora obter vitória judicial. Após 32 anos de trabalho em uma empresa de sistemas de segurança, com dispensa sem justa causa, um gerente de produção foi à Justiça em busca de indenização por danos morais por ter desenvolvido a síndrome.
No último ano na empresa, ele teria tido que estruturar a mudança da sede para outra cidade e colocar em ação um plano de demissão de 120 funcionários, segundo relatou. A empresa alegou que o sofrimento psiquiátrico não tinha qualquer relação com a posição e que ele não estava incapacitado para o trabalho. Já a perícia médica constatou o burnout, bem como sua relação com a função.
Analisando o nexo causal – isto é, a relação entre uma conduta e os danos que resultam dela –, a juíza Renata Prado de Oliveira, da 9ª Vara do Trabalho de São Paulo, negou a indenização pela falta de provas sobre o gerente ter sido responsável por comunicar pessoalmente a dispensa em massa e de documentos médicos que indicassem o sofrimento enfrentado por ele no período.
Em outros casos, a tentativa de provar uma doença profissional para demonstrar que não se cumpriu a estabilidade (prevista por 12 meses) e conseguir a reintegração ao trabalho, além de indenização, é frustrada também pela falta de um elemento central que indicasse a responsabilidade do emprego – ou por não ter apresentado melhora na saúde após o fim do contrato.
Como não provou o assédio moral alegado, nem que sua situação de saúde tenha se alterado significativamente, uma bancária que se queixava de burnout teve pedido negado pela 16ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2). No caso dela, na avaliação médica, foi constatado quadro de transtorno de adaptação, com sintomas leves depressivos e ansiosos.
“Pela própria definição, o burnout sempre terá relação com o trabalho. Já se pensarmos ‘ter sido culpa do trabalho’, é possível negar o nexo. O burnout é definido como exaustão em função do estresse inadequadamente gerenciado no trabalho”, avalia Barros. “Não se trata de separar a vida do trabalho, mas de aquilatar o peso do último no quadro geral, o que se é sempre complicado, na maioria das vezes é possível”.
Em um ambiente de baixo risco, alguém muito predisposto poderia ficar esgotado, mas poucas outras pessoas terão esse quadro, caso em que seria temerário afirmar ser culpa do trabalho. Já em um ambiente de alto risco e muitos estressores, diversas pessoas ficarão esgotadas, de modo que nexo com sentido de culpa ou responsabilidade fica mais claro, por exemplo.
Combinação de motivos do esgotamento
Na Justiça, situações vivenciadas no trabalho não precisam ser a única causa para que caracterize doença ocupacional subsequente ao burnout; quando é assim, se fala em concausalidade. Foi o que se constatou no caso de uma ex-funcionária de fundo de investimentos que prestava assistência a 24 direitos e era constantemente demandada.
O perito escreveu: “A ocorrência da síndrome do esgotamento profissional foi um fator de risco capaz de agravar a doença ou atuar de forma concorrente no aparecimento do dano, considerando tempo e intensidade de exposição”.
E a habitualidade das horas extras foi suficiente para o entendimento de que houve uma conduta culposa da empresa que levou à situação, com indenização fixada em R$ 10 mil. O juiz Eduardo Marques Vieira Araújo, da 70ª Vara do Trabalho de São Paulo, também reconheceu a estabilidade por doença ocupacional, ordenando o pagamento de salários e outros direitos pelo período.
“Em uma síndrome como o burnout, os sinais são menos específicos do que em uma doença. Ainda assim, é um sofrimento, mas com o trabalho em home office pode ser mais difícil pesar as demandas que geraram o problema”, diz a psicóloga Miryam Maziero, integrante do Grupo de Saúde Mental e Psiquiatria do Trabalho, ligado ao Hospital das Clínicas. Inclusive, não se trata apenas de demandas do trabalho remunerado, mas donas de casa e aposentados também podem sofrer de burnout.
Nesse sentido, para orientar peritos e juízes, o grupo desenvolveu uma estratégia para categorizar os diferentes peso de cada uma das causas de estresse e sofrimento. “Ainda que a CID não seja doença, há normas de que o trabalho não pode ser adoecedor, e o burnout poderia ser visto como um indicativo”, aponta Maziero, que orienta tribunais sobre a situação.
Eventualmente, a constatação de burnout pode se dar enquanto a pessoa ainda é funcionária e gerar afastamento – e, no retorno, pode haver a demanda por mudança de função para evitar o agravamento do quadro.
Atuando no call center de uma operadora de telefonia, uma funcionária foi diagnosticada com esgotamento pelos xingamentos e gritos ouvidos de clientes que ligava para buscar soluções a reclamações deles.
Os médicos atestaram que ela apresentava “extrema angústia, ansiedade, excesso de preocupações no dia a dia, mostrando-se esgotada, desmotivada, com choro fácil, irritadiça, inquieta, dores somáticas, medos abstratos, com baixo rendimento mental, isolamento social, pensamentos de menos valia, intrusivos e aumento da psicomotricidade”.
Ela foi afastada das funções e passou a receber auxílio do INSS. Na volta, o juiz Gustavo Elias de Morais Freitas, da 2ª Vara do Trabalho de Santo André (SP), concedeu liminar para que ela não precisasse trabalhar em contato com o público.
Antes da atualização deste ano na CID, havia a previsão de esgotamento relacionado à organização do modo de vida, com envolvimento excessivo em relação ao trabalho, desgaste emocional e sentimento de incompetência, por exemplo. Como a mudança é recente, ainda há julgamentos cujas provas e laudos levam em conta essa abordagem, sob o ponto de vista de que não se restringiria ao trabalho.
Essa categoria mais antiga de esgotamento foi relacionada ao trabalho (e caracterizado como burnout) por um perito que também acrescentou que o quadro poderia “aflorar” após a demissão e mesmo assim não perderia sua relação com o estresse de um ambiente adverso, que teria deixado marcas.
Nessa situação, a ex-funcionária era professora e reclamava que o ambiente era “adoecedor, estressante, hostil, excludente” e que havia passado por diversas situações constrangedoras, de forma intensa e continuada. O perito entendeu que o trabalho era concausa do esgotamento, mas as conclusões foram rejeitadas pela 17ª Turma do TRT2, porque não foram demonstrados os abusos.
A interpretação, novamente, foi de que não há dúvidas do diagnóstico, mas em que medida o trabalho colaborou para ele – nesse caso, a conclusão foi que o “abalo psicológico da autora provém de episódios alheios ao trabalho”. Com a alteração na classificação de esgotamento para dentro de problemas ocupacionais, esse vínculo é mais próximo, mas o ambiente não é o único elemento levado em conta.
“As condições do trabalho em si não causam burnout. Podem apenas desencadeá-lo em pessoas com predisposição individual, que é a soma de fatores constitucionais, em parte genéticos, com comportamentos de risco para a desordem”, diz Wagner Gattaz, professor do IPq e CEO da Gattaz Health&Results.
“Eles seriam personalidades extremamente competitivas, que não querem nem conseguem delegar, desejam se fazer insubstituíveis, não conseguem estabelecer limites e substituem suas necessidades pessoais e familiares pelo trabalho, por exemplo”, afirma Gattaz.
Desse modo, o burnout surge da conjunção da predisposição individual com os fatores de risco no ambiente de trabalho, onde podem se associar a fatores como elevada para produzir mais em menos tempo, ausência de autonomia, comunicação ineficiente e falta de apoio social.
Fonte: Jota Info