Meu caro e dileto leitor, recentemente verificamos a supressão do importante dispositivo, o §2º, art. 15 da Resolução CFM nº 2323/2022 que estabelecia a vedação ética “ao médico realizar perícia médica na presença de assistente técnico não médico. Nesse caso, o médico perito deve suspender a perícia e informar imediatamente o seu impedimento”, por determinação judicial (autos processuais 1066245-58.2021.4.01.3400).
Entendo que a decisão judicial deva ser aplaudida, por um principal motivo: no sentido de retirarmos o foco meramente da seara ética, mas para enfrentarmos o tema sob o enfoque exclusivamente legal. Não compete ao médico este papel, mas sim ao judiciário.
Isto mesmo, o judiciário costumeiramente tem aceitado a nomeação de peritos não médicos para realizar perícias de escopo médico, assim como tem tido leniência na participação de assistentes técnicos não médicos praticando atos estranhos ao seu mister.
E neste sentido, laudos periciais e pareceres técnicos têm sido trazidos aos autos judiciais, incutido ao magistrado a falsa aparência de que a instrução processual está plenamente satisfeita, tornando, em tese, o processo apto para julgamento de mérito, do ponto de vista material, ao valorar este tipo de prova.
A finalidade do artigo é justamente enfrentar este tipo de situação, pois ele não entrega aos jurisdicionados a busca da verdade real.
Ademais, a sentença de mérito prolatada e fundamentada com base nestas provas periciais (supracitadas) induz em nossa sociedade a falaciosa idéia do ato jurídico perfeito: a coisa julgada material.
Compreendamos inicialmente a missão da prova pericial para o processo:
“Perícia Judicial é a prova destinada a levar ao Juiz elementos instrutórios sobre algum fato que depende de conhecimentos especiais de ordem técnica. ” (MARQUES, José Frederico)
“O juiz, tendo de julgar causas, as mais diversas e complexas, precisaria possuir conhecimentos que abrangessem praticamente todas as províncias do saber humano. Como não é sábio, nem onisciente precisa recorrer aos especialistas. ” (Vicente de Azevedo)
E neste diapasão segue o Código de Processo Civil (CPC), que estabelece um BINÔMIO para normatizar a nomeação do perito no processo, vale dizer, ser da confiança do juízo e ter habilitação técnica para a investidura na nomeação.
Atentem que são requisitos elementares e que funcionam como pressupostos de validade para aceitação da prova pericial no processo:
Senão vejamos:
I – Habilitação técnica: são as diversas passagens que o CPC exige este pressuposto para nomeação pericial:
I.I – NCPC, art. 156, caput. “O juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico. ” (Grifo nosso)
I.II – NCPC, art. 156, § 1º “Os peritos serão nomeados entre os profissionais legalmente habilitados e os órgãos técnicos ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado. ” (Grifo nosso)
I.III – NCPC, art. 156, § 3º “Os tribunais realizarão avaliações e reavaliações periódicas para a manutenção do cadastro, considerando a formação profissional, atualização do conhecimento e a experiência dos peritos interessados. ” (Grifo nosso)
I.IV – Art. 156, § 5: “Na localidade onde não houver inscrito no cadastro disponibilizado pelo tribunal, a nomeação do perito é de livre escolha pelo juiz e deverá recair sobre profissional ou órgão técnico ou científico comprovadamente detentor do conhecimento necessário à realização da perícia. ” (Grifo nosso)
I.V- Art. 465. “O juiz nomeará perito especializado no objeto da perícia e fixará de imediato o prazo para a entrega do laudo. ” (Grifo nosso)
I.VI – Art. 468. “ O perito pode ser substituído quando: I – faltar-lhe conhecimento técnico ou científico; ” (Grifo nosso)
I.VII – “Art. 473. O laudo pericial deverá conter:
I – a exposição do objeto da perícia;
II – a análise técnica ou científica realizada pelo perito;
III – a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou;
§ 1o No laudo, o perito deve apresentar sua fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, indicando como alcançou suas conclusões.
§ 2o É vedado ao perito que excedam o exame técnico ultrapassar os limites de sua designação, bem como emitir opiniões pessoais ou científico do objeto da perícia. ” (Grifo nosso)
Interessante verificar que este assunto é tema pacificado na seara criminal, razão pela qual o processo penal não tem mitigado o trabalho realizado pelo perito médico criminal por profissionais não médicos, requisito também imposto pela lei:
I. VIII – CPP, Art. 158 – “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado. ”
“Art. 159 – Os exames de corpo de delito e as outras perícias serão feitos por dois peritos oficiais.” (Grifo nosso)
Por fim, na seara trabalhista a CLT também ressalta este primeiro requisito:
I.IX – Art. 195 § 2º (CLT): “Seja por empregado, seja por Sindicato, em favor de grupo de associados, o juiz designará perito habilitado na forma deste artigo e, onde hão houver, requisitará perícia ao órgão competente do Ministério do Trabalho”. (Grifo nosso)
II – Ser da confiança do juízo:
II.I – CPC, Art. 156,§ 1º – “Os peritos serão nomeados entre profissionais legalmente habilitados e os órgãos técnicos ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado.”
Portanto, é imprescindível que este BINÔMIO esteja satisfeito para que a prova pericial tem como requisito de validade sua aceitação no processo.
Enfrentemos agora a situação da nomeação judicial de profissionais não médicos para a realização de perícias de escopo médico.
Sabemos à rigor que, quando a parte requer perícia médica como prova no processo, o juiz já tem ciência de qual é objeto da lide e os limites/contornos que prova pericial deve enfrentar. Ou seja, o magistrado antes mesmo da nomeação do auxiliar da justiça (perito), ele já definiu o escopo da perícia.
E qual seria o escopo pericial médico, do ponto de vista legal?
Temos que recorrer ao ordenamento jurídico para compreender o que seria atribuição ou designação médica:
I – Previsão trabalhista: há requisito legal previsto na CLT.
I.I – Art. 195 da CLT: “A caracterização e a classificação da insalubridade e da periculosidade, segundo as normas do Ministério do Trabalho, far-se-ão através de perícia a cargo de Médico do Trabalho ou Engenheiro do Trabalho, registrados no Ministério do Trabalho. ” (Grifo nosso)
I.II – Ações trabalhistas referentes ao tema acidente de trabalho, doença ocupacional, (in) capacidade enfrentaremos no tópico “previsão técnica legal”.
II – Previsão previdenciária: há requisito legal previsto em lei ordinária federal, combinada com o tópico “previsão técnica legal” que apresentaremos adiante.
II.I – Para perícias previdenciárias (em âmbito administrativo, no INSS) vale a regra trazida pelas Leis Federais nº 13.846/2019 e 8.213 /91:
LEI 13.846/2019, art. 30, §3º “São atribuições essenciais e exclusivas de Perito Médico Federal, de Perito Médico da Previdência Social e, supletivamente, de Supervisor Médico-Pericial da carreira de que trata a Lei nº 9.620/1998, as atividades médico-periciais relacionadas com:
a) emissão de parecer conclusivo quanto à incapacidade laboral; (…)
c) caracterização da invalidez; ” (Grifo nosso)
No âmbito administrativo, tanto o perito quanto o assistente técnico devem ser MÉDICOS para verificação da capacidade laborativa:
Art. 42, § 1º da Lei 8,213/91: “A concessão de aposentadoria por invalidez dependerá da verificação da condição de incapacidade mediante exame médico-pericial a cargo da Previdência Social, podendo o segurado, às suas expensas, fazer-se acompanhar de médico de sua confiança. ” (Grifo nosso)
Portanto, é total contrassenso e colide com a previsão legal a habilitação aos autos na seara judicial de perito ou assistente técnico não médico para se pronunciar em um assunto técnico cuja inabilitação é evidente.
III – Previsão técnica legal: a Lei Federal nº 12.842/2013 (lei do ato médico) estabelece:
“Art. 4º São atividades privativas do médico:
XII – realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;
XIII – atestação médica de condições de saúde, doenças e possíveis sequelas. ” (Grifo nosso)
Neste sentido, os agravos em saúde que requerem investigação de diagnóstico nosológico, incapacidades/sequelas, nexo de causalidade entre exercício de trabalho e a doença em processos judiciais, o profissional habilitado para realizar o ato pericial é o médico.
Designar profissional não médico como perito ou assistente técnico fere o primeiro requisito legal já apresentado, que é o da habilitação técnica.
Interpretação de forma extensiva deste requisito com nomeação e/ou participação de não médicos (ainda que de confiança do juízo e das partes, respectivamente) macula a prova pericial justamente por não se assegurar que o laudo pericial ou parecer técnico acostados aos autos são provas produzidas à luz do rigor do critério técnico-científico necessário e cujo embasamento supere à mera opinião pessoal.
Portanto, um profissional inabilitado seguramente não é capaz de gerar prova supletiva que agregue conhecimento científico suficiente para subsidiar o juízo na formação do livre convencimento motivado com sentença de mérito.
Aos jurisdicionados que recebem esta prestação judicial pautada por laudos periciais não médicos opinativos se configura um engodo, um ato jurídico perfeito falacioso ou uma coisa julgada material com vícios instrutórios insanáveis.
E, neste sentido, a sentença deve ser cassada. Apresento abaixo jurisprudência relacionada:
“DOENÇA OCUPACIONAL – LAUDO PRODUZIDO POR FISIOTERAPEUTA – NULIDADE. Na hipótese em que se discute a existência de doença ocupacional, a perícia deve ser realizada por médico, profissional habilitado e que possui o conhecimento técnico específico para a necessária anamnese e, sobretudo, para o diagnóstico acerca de eventual patologia. ” (RO 0001417-25.2000.5.15.0008 – TRT15)
“PREVIDENCIÁRIO. PERÍCIA REALIZADA POR FISIOTERAPEUTA. ANULAÇÃO DA SENTENÇA. Conforme precedentes desta Corte, dentre as atribuições do fisioterapeuta não se inclui a realização de diagnóstico médico, privativa de profissional da medicina, o qual é o indicado para a realização de perícia judicial em que se objetiva a verificação da incapacidade da parte autora. ” (AC 9999 SC 0015490-40.2010.404.9999)
Nobre leitor, se você chegou até aqui é porque está compreendendo que para o judiciário não há arremedos.
Imaginemos a seguinte situação. O processo judicial tem a necessidade de uma perícia contábil e há indisponibilidade de perito contador na localidade. O processo não estará instruído com a nomeação judicial de um bancário ou economista justamente por trabalharem na “área de finanças”. Isto não existe! As partes deste suposto processo estariam de fato sendo lesadas, à medida que não se atendeu ao rigor do quesito habilitação.
Da mesma forma, seria um contrassenso ao juiz permitir ao processo com perícia contábil a habilitação de um bancário ou economista como assistente técnico da parte, pautada meramente e apenas pelo requisito “ser de confiança das partes”. Parecer técnico e quesitos suplementares/complementares destes atores sociais só trazem tumulto processual, meras opiniões pessoais não técnicas acerca de um assunto especializado.
Por fim, deixo aqui aos peritos e assistentes técnico médicos, além das sociedades profissionais médicas minhas orientações:
1º – ao ser designado como perito médico no processo, verifique o escopo da atuação pericial determinado pelo juiz. Sendo assunto técnico médico, peticione ao juízo para a participação de assistentes técnicos (AT) apenas os profissionais tecnicamente habilitados, no ato da aceitação da nomeação. Tal medida evitará desgastes futuros, como ter que responder quesitos suplementares/complementares de AT inabilitados, ter seu laudo pericial contestado por parecer técnico pautado em opiniões pessoais do AT ou mesmo o processo ser anulado por vícios periciais desta sorte;
2º – Não havendo determinação do escopo da perícia e o nomeando verifica que de fato se trate de perícia médica: peticionar ao juízo que aceita a nomeação, mas devendo informar que o escopo pericial deva atender assuntos técnicos médicos, razão pela qual é um ato médico exclusivo;
3º – Sendo investido por uma das partes do processo como AT de perícia de escopo médico no qual houve prévia nomeação judicial de perito não médico, deve a parte/AT peticionar ao juízo que o expert não possui a habilitação necessária, requerendo a destituição do mesmo, sob pena de vício insanável da instrução processual.
Um forte abraço a todos!
“O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria. ” (Mário Quintana)
Bibliografia:
Marques, José Frederico, Manual de Direito Processual Civil, vol. 2, pág. 225