Dileto leitor,
neste país continental chamado Brasil temos dezenas de milhões de processos judiciais ativos e muitos deles demandam a necessidade de perícia médica.
Uma vez estabelecido pelo juiz o escopo pericial, o magistrado nomeia o expert para a realização do ato pericial, nos termos do art. Art.157, § 2º do CPC:
“Será organizada lista de peritos na vara ou na secretaria, com disponibilização dos documentos exigidos para habilitação à consulta de interessados, para que a nomeação seja distribuída de modo equitativo, observadas a capacidade técnica e a área de conhecimento.”
Neste momento, o profissional deve avaliar se o caso em concreto incorre em suspeição ou impedimento antes de aceitar o encargo.
Ao aceitar o mister, se estabelece o princípio da “pacta sunt servanda”, expresso como a afirmação de força obrigatória que as obrigações assumidas devem ser respeitadas e cumpridas integralmente, considerando a volição e autonomia das partes.
Todavia, o perito ao não aceitar esta designação, deverá se pautar nas regras estabelecidas pelo CPC, seja de impedimento ou suspeição, cuja abrangência envolve todos os sujeitos imparciais do processo (magistrado, MP, perito, dentre outros).
O art. 145, §1º, estabelece uma das hipóteses de suspeição o qual transcrevemos:
“Há suspeição do juiz:
§ 1º Poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões.”
O perito médico, ao trazer sua negativa quanto à designação no caso concreto no prazo legal de 15 dias contados da intimação (sob pena de renúncia ao direito de alegá-la -Art. 157, §1º, CPC), se funda em motivo legítimo, vale dizer, previsto em lei.
Neste sentido, compete ao juiz substituir o perito com nova nomeação, nos termos do Art. 467 do CPC:
“Art. 467. O perito pode escusar-se ou ser recusado por impedimento ou suspeição.
Parágrafo único. O juiz, ao aceitar a escusa ou ao julgar procedente a impugnação, nomeará novo perito.”
Ocorre que eventualmente alguns magistrados requerem dos experts a indicação dos motivos de foro íntimo ou mesmo obrigam que eles realizem as perícias médicas. Ora, se a lei não prescreve o detalhamento das razões do “foro íntimo”, justo é que o seu requerimento simbolize um excesso acerca da interpretação legal. Ademais, obrigar um perito a realizar perícia também não está de acordo com os ditames da lei.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão elucida em seu artigo 4º:
“Art. 4.º – A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei.”
De acordo com Bahia (2017, p. 117), avalia-se que:
“O Estado democrático de direito (art. 1º caput) repousa sob o signo da legalidade[…]. O princípio da legalidade, portanto, expressa a sujeição ou subordinação das pessoas, órgão ou entidades às prescrições emanadas do Legislativo, executivo e judiciário.”
O Princípio da Legalidade é resultado de conquistas, jurídica e social, e “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II- Constituição Federal).
Portanto, deve-se criteriosamente compreender que este fenômeno de “obrigar perito realizar perícias, a despeito da alegação de motivo legítimo”, deve ser revisto, considerando que tal circunstância reflete abuso do poder público; o autoritarismo e as arbitrariedades estão sob a égide da lei e dos princípios constitucionais.
O abuso de autoridade envolve a coerção que nada mais é que o ato de induzir, pressionar ou compelir alguém a fazer algo pela força, intimidação ou ameaça. A lei nº 13.869/19 (Dos crimes de abuso de autoridade), traz em seu art. 33 essa circunstância:
“Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.”
Portanto, na configuração de um ato que configure um excesso legal, o ideal é iniciar um amistoso diálogo com o agente público para que não seja efetivada uma determinação desta sorte. Não havendo êxito, uma consulta com a Corregedoria do órgão acerca da conduta praticada pode ser efetuada; qualquer instância legal deve ser a última “ratio” para resolução do conflito.
É a reflexão de deixo para todos.
Referências Bibliográficas:
BAHIA, F. Direito constitucional: coleção descomplicando. 3.ed. Pernambuco: Armador, 2017.
DE PUY, Rodrigo. Curso de Perícia Médica administrativa e judicial. São Paulo, 2024. Editora Lujur.