16 set 2024

Atesta CFM (Resolução CFM nº 2382/2024)  – reflexões quanto às inconsistências quanto à motivação, conceituais, práticas, bioéticas e jurídicas

postado em: Coluna do Puy

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No dia 05 de setembro de 2024, o CFM lançou uma plataforma on-line com a missão de combater a emissão de atestados médicos falsos no Brasil e expediu a Resolução CFM nº 2.382/2024 que regulamenta o Atesta CFM.

Conforme anunciado no site do CFM (https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-lanca-plataforma-online-para-combater-a-emissao-de-atestados-medicos-falso-no-brasil – acessado em 10/09/2024) , “o Atesta CFM, uma plataforma online que vai oferecer à sociedade serviços gratuitos de validação e chancela de atestados médicos emitidos no País. Com isso, a Autarquia cria mecanismos efetivos para combater fraudes e outras irregularidades na emissão desses documentos. A decisão beneficia médicos, que contarão com a proteção do seu ato profissional; os trabalhadores, que terão a certeza de os atestados que portam foram assinados por médicos de fato; e as empresas, que poderão detectar irregularidades em documentos que foram entregues, mas são fraudulentos. O Atesta CFM integrará diferentes bancos de dados, de forma segura e com total respeito às regras da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), possibilitando a emissão, validação e verificação de atestados médicos. Entre as ações decorrentes, o médico será notificado de todos os documentos emitidos em seu nome e CRM, os trabalhadores poderão verificar o seu histórico de atestados e as empresas e empregadores terão a chance de verificar a veracidade dos atestados entregues.” (grifo nosso)

Ademais, poderão ser emitidos quaisquer tipos de atestado, como os de saúde ocupacional, afastamento e acompanhamento e, inclusive, a homologação de atestados pela medicina do trabalho.

Com relação ao funcionamento, informa o CFM que “plataforma trará agilidade e praticidade para o ecossistema do trabalho.  O trabalhador não precisará entregar o atestado pessoalmente na empresa, eliminando o risco de perda do documento. Basta que ele autorize o médico a enviá-lo pelo sistema, conforme prevê a Lei Geral de Proteção de Dados. Com isso, o empregador receberá automaticamente o documento digital. Sem esse aval, o empregado terá de levar o atestado na forma física, em mãos, mas impresso em formulário que atende os requisitos do sistema.” (Grifo nosso)

“O Atesta CFM também funcionará como uma espécie de prontuário digital do trabalhador, no que diz respeito aos atestados médicos. Por meio da ferramenta, será possível acessar todos os documentos desse tipo emitidos no nome de uma pessoa, os quais poderão ser localizados por especialidade, diagnóstico, hospital ou clínica onde foi realizado o atendimento, período ou nome do médico.” (grifo e destaque nosso)

Pois bem, diante do anúncio realizado pelo CFM, iremos analisar criticamente a Resolução nº 2384/2024, cotejando limitações conceituais, práticas, bioéticas e jurídicas.

I- Limitações quanto à exposição de motivos e criação do Atesta CFM

A exposição de motivos do CFM que supostamente legitima a autarquia ter implementado o Atesta CFM foi se deparar com “com um grande desafio que está causando fortes impactos sociais e econômicos, incidindo negativamente tanto nas esferas governamentais quanto em empresas públicas e privadas. Trata-se do alto índice de atestados falsos existentes e em circulação. Considera-se, segundo levantamento de 2020 da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Goiás (Fecomercio-GO), que cerca de 30% dos atestados médicos emitidos no Brasil são falsos, o que gera um impacto incalculável na economia (estimam-se quase 3 bilhões de reais em prejuízos diretos gerados pelo absenteísmo de funcionários em empresas públicas e privadas), sem contar impactos gerados no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).” (grifo nosso)

A Resolução acrescenta, ainda,

“CONSIDERANDO

o alto volume de atestados materialmente falsos e o grande impacto econômico que isso acarreta para as empresas públicas e privadas; (…)

CONSIDERANDO

os  altíssimos  custos  que  a  emissão  de  atestados  falsos  ou  a  falta  de  controle  dos  mesmos gera para o Governo em seus âmbitos (federal, estadual e municipal) e, principalmente, para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) devidos a tentativas de fraudes”  (Grifo nosso)

Primeiramente devemos refletir sobre a natureza da fonte dos dados. São dados que podemos aferir e confirmar em outras instâncias? O dado informado (30% dos atestados médicos emitidos no Brasil são falsos) provém de uma entidade estadual patronal (Fecomércio-GO). Na exposição de motivos do CFM, não há qualquer menção de outro banco de dados que valide ou ratifique a estatística, sejam artigos científicos produzidos por centros de pesquisa em saúde ocupacional ou compilação de registros de órgãos oficiais brasileiros.

Superada esta primeira reflexão e tomando como verdadeira a estatística do órgão estadual patronal (citada e referenciada para elaboração da Resolução do CFM), temos que compreender que os fatos supramencionados são gravíssimos. Há impactos sociais severos quando se observam crimes de falsidade documental e estelionato relacionados aos atestados médicos falsos, com reflexo nas empresas, instituições públicas e no seguro social brasileiro (INSS), reflexos cuja causa básica que não é simples de resolver.

Primeiro, porque há a necessidade de atuação interdisciplinar de diversos órgãos estatais de fiscalização, controle e repressão do país, considerando o princípio da cooperação com a finalidade de desmantelar o suposto crime organizado: polícias civil, MPT, AFT, judiciário, CFM, dentre outros, cada ente contribuindo no limite de seu escopo. Segundo, é complexa a compreensão do fenômeno absenteísmo no ambiente laboral, sobretudo quando não existem causas biológicas atribuíveis (e chanceladas por atestado médico); a falta ao trabalho pode ser efeito de diversas outras dimensões do indivíduo (questões extralaborais, econômicas, familiares, lazer, etc), da empresa  (organização do trabalho, monotonia, ausência de perspectivas, etc) e sociedade (transporte, segurança pública, etc).

II-Limitações conceituais  acerca do atestado médico falso

A Resolução CFM nº 2382/2024 aduz, ainda, que “não obstante essas ações, o problema ainda persiste, pois, apesar de o CFM ter regulamentado o uso de documentos digitais e de certificados eletrônicos, bem como ter disponibilizado uma plataforma de prescrição eletrônica, ainda ocorre expressivo volume de fraudes. Um atestado falso pode ser obtido por meio de simples pesquisa na internet, em sites que oferecem esse tipo de serviço ou mesmo por meio de abordagens diretas, realizadas em grandes centros e que podem ser averiguadas por diversas matérias realizadas pela imprensa.”

E, nesse contexto, os seguintes fatores motivaram o CFM elaborarem a Resolução CFM nº 2382/2024 foram:

“▪ O  compromisso  institucional  do  CFM  de  prover  soluções  a  médicos  brasileiros  e  à  população  de  forma  geral para organizar, dignificar e dar total segurança e transparência ao ato médico, conforme suas normas e diretrizes, propiciando continua evolução da medicina em nosso país;

O impacto social, econômico e assistencial que esta Resolução causará em benefício de nossa população e da própria classe médica;

▪ Continuidade da política adotada pelo CFM de valorização e incentivo ao uso e emissão de documentos digitais de forma legal e segura, evitando fraudes;

Possibilidade  de  o  próprio  CFM  estruturar  e  prestar  serviços  de  validação  e  autenticação  de  atestados  para a população e empresas interessadas.” (Grifo nosso)

Pois bem.

A principal motivação do CFM em criar o Atesta CFM foi o impacto econômico advindo das licenças-saúdes dos trabalhadores e que irá dar total transparência e segurança do ato médico para evitar fraudes, em benefício da população e classe médica.

Nenhum momento a Resolução esclareceu qual seria o benefício para o trabalhador/paciente, principal envolvido na discussão e tomada de conduta pela autarquia.

Novamente, sem adentrar no mérito de como a entidade do sindicato patronal goiano alcançou esta estratosférica estatística de atestado médico falso (30% dos eventos), é necessário enfrentar conceitualmente a designação de  “atestado médico falso”.

Conforme a obra “Novo Código de ética médica comentado: aspectos práticos e polêmicos”, editora CRV, o atestado falso é aquele no qual o emissor do documento não é de fato o profissional que assina e carimba no final do atendimento. Ocorre quando o médico tem furtado/roubado seus pertences pessoais e terceiros utilizam o carimbo para expedir documentos em nome do profissional. Alternativamente, o atestado médico falso também existe quando estelionatários reproduzem os dados contantes do carimbo médico para elaborar atestados. Nestes casos, a consulta médica nunca existiu.

O atestado falso em nada se confunde com o atestado gracioso.

O atestado gracioso é qualificado também como complacente ou mesmo sentimental (DE PUY, Rodrigo 2024); este documento é emitido pelo próprio médico portador do carimbo e que apõe sua assinatura no documento. Este atestado não condiz com a verdade, uma vez que o paciente não realizou efetivamente a consulta com o médico (paciente “ganhou um atestado sem ser consultado”); ou, caso tenha a consulta médica ter existido, a necessidade do afastamento/incapacidade não se faz necessário, embora venha atender desejo pessoal do paciente em estar licenciado do trabalho. Neste caso, o médico poderia inclusive responder eticamente pelos seus atos, considerando que expediu um documento com fé pública e que não é condizente com a realidade atestada.

Superado esta questão conceitual, retornemos à exposição de motivos com as seguintes reflexões:

1º – 30% dos atestados apresentados são efetivamente falsos ou são compostos também pelos atestados sentimentais? Se a resposta for que todos são atestados falsos, temos então um cenário de crime organizado gravíssimo e que diversos órgãos estatais devem atuar sinergicamente para desbaratar este sistema. Caso contrário, temos uma mescla de atestados graciosos com atestados falsos que debateremos a seguir.

2º – O Atesta CFM, caso implementado no país, não conseguirá identificar o atestado sentimental; este é tratado no âmbito da saúde ocupacional da empresa, na medida que a instituição elabore fluxos de avaliação pericial administrativa ou homologação dos atestados médicos pelo médico do trabalho indicado pela empresa. Portanto, ao admitirmos que o universo anterior de atestados (30%) seja significativamente composto de documentos graciosos, a plataforma do CFM não terá abrangência para coibir esta emissão.

Portanto,a total segurança e transparência ao ato médico alegada pela Resolução não será alcançada pelo Atesta CFM.

III-Limitações práticas: da necessidade de acesso obrigatório à internet e de recursos de tecnologia, bem como da burocratização de procedimentos relativos à emissão de atestados médicos

A Resolução CFM nº 2382/2024 estabelece que até março de 2025, todas as instituições de saúde e médicos deverão se adequar às regras uniformes quanto à emissão de atestados médicos para afastamento e atestado de saúde ocupacional (ASO), devendo estar integrados eletronicamente ao ecossistema do Atesta CFM. Após este período, nenhum outro documento (físico ou eletrônico não integrados ao CFM) expedido por médico ou instituição serão considerados válidos em território nacional (Art. 13 e Art. 16). Vejamos o art. 16 da Resolução:

“Art. 16. Médicos regularmente inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina terão um prazo de 180 (cento e oitenta)  dias,  a  partir  da  data  de  publicação  desta  Resolução,  para  se  adequarem  a  esta Resolução.

Parágrafo   único. Após   esse   período, serão   considerados   válidos   somente   atestados   emitidos   eletronicamente pelo ecossistema  Atesta CFM ou escritos à mão nos blocos de atestados impressos por esse sistema.”

O Brasil é um país de dimensões continentais e com diversas realidades que jamais poderão ser desconsideradas. A realidade da prática médica, bem como do perfil profissional de 575.000 (quinhentos setenta e cinco mil) médicos atuantes no Brasil não é uniforme. Temos gerações de médicos jovens que já nasceram com suas rotinas imersas na tecnologia; por outro lado, temos grupos de médicos que não possuem destreza digital, praticando e registrando atos profissionais em documentos físicos. Não obstante, os sistemas públicos e privados de saúde possuem realidades diferentes nos estados da federação. No SUS, temos médicos atuando em unidades básicas de saúde que sequer dispõe de acesso a internet, computadores, mas tão somente registros físicos dos atendimentos. Neste país, a assistência médica realizada nas comunidades rurais e indígenas, população ribeirinha e favelas, carece dos requisitos básicos para a efetivação desta nova prática médica. Neste norte, a instrumentalidade da forma (obrigatoriedade da integração dos atestados com o ecossistema Atesta CFM) poderá certamente inviabilizar a prática do ato médico, especialmente com relação às populações em vulnerabilidade social e dos médicos que não possuem conhecimentos tecnológicos suficientes.

Ademais, ao impor uma forma de trabalho exclusivamente vinculada ao digital (tanto o atestado físico quanto o atestado digital necessitam de validação eletrônica no ecossistema CFM), a autarquia limita a autonomia do médico ao não mais permitir que o profissional escolha, de forma livre, a maneira como irá expedir o documento, mesmo resguardadas as informações necessárias para exarar o documento (Art. 7º):

“Os atestados médicos emitidos com fundamento nesta Resolução deverão conter:

I – identificação do médico: nome e CRM/UF;

II – tempo concedido de dispensa à atividade necessário para a recuperação do paciente;

III – Registro de Qualificação de Especialista (RQE), quando houver;

IV – identificação do paciente: nome e número do CPF, quando houver;

V – informação da CID (Classificação Internacional de Doenças) e sua apresentação no atestado mediante autorização do paciente ou de seu representante legal;

VI – data de emissão;

VII – assinatura qualificada do médico, quando documento eletrônico, ou assinatura e carimbo ou número de registro no Conselho Regional de Medicina, quando manuscrito;

VIII – dados de contatos profissionais (telefone e/ou e-mail);

IX – endereço profissional ou residencial do médico.”

Desta maneira, em março de 2025, o médico não poderá mais emitir um único atestado impresso ou redigido de próprio punho sem estar vinculado ao CFM, considerando que deverão solicitar diretamente na plataforma Atesta CFM formulários com QRCode.

O profissional que emitir documento de papel com o QRCode, terá a obrigação posterior de acessar a plataforma do Atesta CFM e registrar as informações obrigatórias relacionadas à expedição do atestado do paciente, implicando em mais burocracia e trabalho ao médico, além de dispêndio de tempo, caso o paciente e/ou próprio profissional optem pelo documento físico. Diga-se de passagem, é totalmente legítimo o paciente optar pelo documento físico, considerando que tem finalidades diversas e não apenas trabalhistas (abonar faltas em contexto de trabalho).

Vejam bem, serão duas etapas: primeiro, a solicitação dos blocos com QRCode, segundo, o posterior lançamento dos dados do atestado no Atesta CFM. Caso ocorra extravio de alguma folha do atestado com QRCode, o médico terá uma terceira obrigação: registrar na plataforma Atesta CFM o ocorrido e as ações adotadas com relação à perda do documento (Art. 4º).

“Art. 4º. A plataforma Atesta CFM deve dar suporte à emissão de atestados em meio físico, para casos  excepcionais que necessitem da emissão de atestados em formato manual (papel), e ainda atender às premissas de rastreabilidade, autenticidade e validação equivalentes ao meio digital.

§ 1º Para o uso de atestados em meio físico, os médicos deverão solicitar sua emissão diretamente na plataforma Atesta CFM, a qual emitirá um ou mais blocos. Cada página contará com um QRCode (código de resposta rápida gerado a partir de código único e sequencial) vinculado ao CRM/UF do médico.

§  2º Após  a  emissão  do  atestado  físico,  o  médico  deve  registrar  na  plataforma  Atesta  CFM  as  informações  obrigatórias  garantindo  a  rastreabilidade,  autenticidade  e  integridade  das  informações  fornecidas.

§  3º O  médico  será  responsável  pela  guarda  e  uso  correto  das  folhas  de  atestados  geradas  pela  plataforma  Atesta  CFM.  Em  situações  de  perda,  extravio  ou  comprometimento  da  integridade  das  folhas,  o  médico  deve  registrar  imediatamente  o  ocorrido  na  plataforma e  adotar  todas  as  ações  necessárias para evitar o uso indevido das informações nelas contidas.”

VI- Inconsistência acerca da competência do CFM na realização de banco nacional de saúde e violação da intimidade e privacidade do cidadão

O CFM é uma autarquia federal cuja missão é fiscalizar o exercício ético da profissão. Suas atribuições estão estabelecidas na lei nº 3.268/57, arts. 2º e 5º:

“Art . 2º O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em tôda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente. (…)

Art . 5º São atribuições do Conselho Federal:

(…) e) promover quaisquer diligências ou verificações, relativas ao funcionamento dos Conselhos de Medicina, nos Estados ou Territórios e Distrito Federal, e adotar, quando necessárias, providências convenientes a bem da sua eficiência e regularidade, inclusive a designação de diretoria provisória;

(…).”  (Grifo nosso)

Está claro que a missão do CFM é garantir à sociedade brasileira que o exercício da Medicina seja praticado com diligência e segurança, sendo um bastião do controle profissional. Embora seja tênue a diferença, não é atribuição do CFM ser o fiel depositário das informações médicas constantes da relação médico-paciente, gerenciamento de dados de saúde, tampouco tem a prerrogativa de realizar banco nacional de dados de saúde de seus cidadãos.

Ou seja: não figura nas atribuições do CFM a curadoria dos dados em saúde dos cidadãos brasileiros.

O desvirtuamento da função do CFM na Resolução fica claro logo na disposição inicial da Resolução ao prever prerrogativas das quais não faz parte do poder discricionário do órgão:

“Dispõe  sobre  a  emissão  e  o  gerenciamento  de  atestados  médicos  físicos  e  digitais  em  todo  o  território nacional.”

A Resolução CFM nº 2382/2024 também  prevê o  rol de atribuições estranhas à autarquia nas considerações iniciais da norma e nos arts. 1º e 18, caput:

“CONSIDERANDO

a  Resolução  CFM  nº  2.309/2022,   que  estabelece  regramento  para  publicização  e  compartilhamento de dados de médicos inscritos à luz da LGPD, do interesse público e das atribuições legais conferidas ao Conselho Médico; (…)

Art. 1º. Fica instituída a plataforma Atesta CFM como o sistema oficial e obrigatório para emissão e gerenciamento de  atestados  médicos,  inclusive  de  saúde  ocupacional,  em  todo  o  território  nacional,  sejam em meio digital ou físico, conforme as normas e diretrizes estabelecidas nesta Resolução.

Art. 18. A   administração   do   atestado   médico   digital   (Atesta   CFM)   caberá   a   uma   Comissão   Permanente de Acompanhamento (CPA), composta por conselheiros e funcionários do CFM.”  (Grifo nosso)

Compete ao médico e as instituições assistenciais de saúde serem os responsáveis pela tutela dos dados do paciente, considerando que a relação médico-paciente é de caráter personalíssimo, não havendo terceiro interessado nesta relação jurídica entre curador e doente. Com relação ao gerenciamento do absenteísmo das empresas compete ao SESMT (Serviço especializado de engenharia de segurança e medicina do trabalho) próprio ou empresa de saúde ocupacional credenciada.

VI.I-Da criação de banco nacional de dados de saúde dos cidadãos brasileiros pelo CFM

Em qualquer país com regime democrático inexiste órgão estatal que tenha controle às informações de saúde de seus cidadãos.

A Constituição federal do Brasil estabelece no seu art. 5º:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” (Grifo nosso)

Neste sentido, todo cidadão brasileiro tem direito, como regra, ao sigilo bancário, fiscal, telefônico e dos dados em saúde.

Qualquer tentativa de se criar um cadastro nacional com dados de saúde é atentatório à vida privada do indivíduo, de forma coercitiva, considerando que sequer o trabalhador/paciente terá o direito de escolher se quer que seus dados em saúde sejam remetidos a um terceiro estranho à relação médico-paciente, no caso o CFM, bem como posteriormente compartilhado com outros órgãos.

O paciente, ao receber um atestado médico pelo Atesta CFM, físico ou digital, terá seus dados compartilhados com o CFM, INDEPENDENTE DA ESCOLHA OU VONTADE. especialmente a partir de março de 2025, ocasião que TODOS OS ATESTADOS MÉDICOS CONSIDERADOS VÁLIDOS SERÃO POR MEIO DA PLATAFORMA DO CFM, conforme parágrafo único do art. 16 da Resolução CFM nº 3283/2024:

“Parágrafo   único. Após   esse   período, serão   considerados   válidos   somente   atestados   emitidos   eletronicamente pelo ecossistema Atesta CFM ou escritos à mão nos blocos de atestados impressos por esse sistema.”

VI.II-Do desvio de finalidade da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) pela Resolução do CFM

O art. 5º da LGPD estabelece que dados de saúde são pessoais sensíveis:

“Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:

I – dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável;

II – dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;

IV – banco de dados: conjunto estruturado de dados pessoais, estabelecido em um ou em vários locais, em suporte eletrônico ou físico; “ (Grifo nosso)

Com relação ao tratamento de dados pessoais, a LGPD estabelece que o tratamento de dados pessoais deve ocorrer mediante o consentimento do paciente ou então sem consentimento, mas para a tutela da saúde, por meio da autoridade sanitária:

“Art. 11. O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses:

I – quando o titular ou seu responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas;

II – sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para:

a) cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;

b) tratamento compartilhado de dados necessários à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos;

c) realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais sensíveis;

d) exercício regular de direitos, inclusive em contrato e em processo judicial, administrativo e arbitral, este último nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem) ;

e) proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro;

f) tutela da saúde, em procedimento realizado por profissionais da área da saúde ou por entidades sanitárias; ou

f) tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária; ou       

g) garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos, resguardados os direitos mencionados no art. 9º desta Lei e exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais.” (grifo nosso)

Conforme dissemos alhures, o CFM não é autoridade sanitária para se imiscuir na relação médico-paciente com a finalidade de coletar e compor banco de dados.

A tutela da saúde é um Direito Fundamental previsto pela Constituição. Assim, quando for necessária a realização de um procedimento a fim de proteger a saúde de um indivíduo, poderão ser utilizados os dados dele mediante essa justificativa. É essencial destacar que o procedimento apenas poderá ser realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária. As autoridades sanitárias são entes de direito público, da administração direta ou indireta, e dedicados a algum aspecto da preservação da saúde pública. As empresas de saúde, por sua vez, não estão incluídas nessa base legal.

No caso em questão, o Atesta CFM não está protegendo a saúde do indivíduo ou coletividade, sua missão é reduzir fraudes documentais, assunto atinente à esferas policial e judicial.

A interpretação da LGPD pela Resolução foi desvirtuada.

Pensemos na situação em que é descoberta por profissional de saúde uma doença infectocontagiosa (HIV, por exemplo) que deve ser obrigatoriamente submetida à notificação compulsória das autoridades sanitárias. Observa-se que há um embate entre o direito à privacidade daquele dado sensível e o dever do profissional em notificar a autoridade sanitária. No caso em tela, é necessário que seja realizada uma ponderação dos bens jurídicos que estão envolvidos na relação, de um lado, observamos a necessidade de proteção da privacidade e intimidade do indivíduo, direitos assegurados constitucionalmente e sob uma segunda perspectiva, verificamos o dever legal de notificação com fundamento na proteção da coletividade, uma vez que a notificação compulsória do desenvolvimento de doenças previamente classificadas possuem o condão de instigar a administração pública em prover políticas públicas de prevenção à contaminação e disseminação de doenças, além de se dedicar a desenvolver novas medidas de tratamento. A notificação via SINAM (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) alimenta o banco de dados do Ministério da Saúde, órgão legitimado no estudo epidemiológico coletivo das doenças que estão acometendo os brasileiros.

Igualmente, quando o médico do trabalho identifica um acidente de trabalho de um obreiro e abre o formulário da CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), tal formulário é remetido ao INSS. O INSS gerencia as causas doenças/acidentes de trabalho no Brasil.

Não é o que se verifica no Atesta CFM, não há qualquer benefício social em saúde do banco de dados em saúde criado pela autarquia, mas tão somente o financeiro.

Portanto, “os fins não justificam os meios”, um órgão federal capturar os dados de saúde do cidadão para atender a finalidade de se reduzir o absenteísmo nas empresas e fraudes no INSS.

Façamos aqui uma analogia com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), especialmente no sentido de refletirmos acerca da legitimação da atuação do órgão, da proporcionalidade da medida empregada e na legalidade acerca da invasão da relação privada de confiança estabelecida entre o profissional e cliente. A OAB, com a finalidade de atuar no crime organizado do país, resolve criar um banco de dados acerca da situação econômico-financeira das pessoas físicas (PF) e jurídicas (PJ) do país, ao tornar obrigatório o advogado apresentar os contratos firmados com seus clientes acompanhada da declaração de bens do cliente. Só assim a representação do advogado seria possível, nos mesmos moldes que o atestado médico emitido fora do ecossistema Atesta CFM não será válido no Brasil. Verificamos um excesso de ação de um órgão estatal, um ato de violência ao cidadão que necessita da assistência profissional, mas que tem suas garantias fundamentais vilipendiadas em prol de um interesse diverso.

A confiança é considerada a base de qualquer relacionamento afetivo, sendo um fator de relevância para o sucesso ou insucesso de diversas relações. Na vida em sociedade, a confiança no poder público, no sistema monetário, e nas instituições de uma maneira geral, se mostra necessária, inclusive, para a manutenção da ordem (1).

VI.III-Da venda do banco de dados do Atesta CFM

Há, ainda, a adição de mais uma camada ao banco de dados do CFM que torna ainda mais tormentosa a sua efetivação. O banco nacional de dados em saúde criado pelo Atesta CFM será vendido para empresas interessadas em se inteirar dos dados relacionados a seus trabalhadores, conforme art. 14 da Resolução CFM nº 2382/2024:

“Art. 14. Pessoas  jurídicas  que  tiverem  interesse  na  utilização  do  serviço  avançado  de  validação  de  atestado  da  plataforma  Atesta  CFM  deverão  contratá-lo  em  site  específico  do  CFM,  mediante  a  formalização do termo de adesão e o pagamento do preço público do serviço.

§ 1º O valor do serviço será definido por meio de Instrução Normativa.

§  2º  O  encaminhamento de  atestados  por  meio  da  plataforma  Atesta  CFM  para  a  contratante  interessada será restrito a empregados que a contratante indicar como tendo fornecido consentimento prévio para o compartilhamento.

§ 3ºO termo de consentimento do empregado deve ser firmado conforme modelo a ser disponibilizado pelo CFM à contratante interessada.

§  4º  A validade, a veracidade e a conformidade do termo de consentimento com o modelo fornecido pelo CFM são de responsabilidade civil, criminal e administrativa da contratante interessada e de seus prepostos.

§  5º Em  hipótese  alguma,  o  colaborador  da  contratante  deve  ser  obrigado  a  assinar  o  termo  de  consentimento  para  o  compartilhamento  de  seus  atestados,  tendo  o  direito  de  revogá-lo  a  qualquer  momento e, se desejar, de encaminhar o atestado médico diretamente à empresa contratante.” (Grifo nosso)

Vejam também a nuance do dispositivo supracitado, relacionado ao consentimento do paciente/trabalhador (§º5). O paciente pode ou não consentir no compartilhamento de suas informações com a empresa a ele vinculada; consentindo, a instituição teria como avaliar o atestado digital diretamente na plataforma, sem a necessidade do documento impresso.

Todavia, se o paciente não consentir o compartilhamento, isto não significa que o CFM abdicará de compor o banco de dados em saúde do indivíduo, considerando que o paciente, ao receber o atestado médico NÃO PODERÁ CONSENTIR se deseja ou não compartilhar seus dados com o CFM; simplesmente médico e paciente DEVERÃO OBRIGATORIAMENTE se submeter à coleta de dados pelo CFM!

Do ponto de vista legal, a venda de informações de banco de dados em saúde é vedada, nos termos da LGPD:

“Art. 11, § 4º É vedada a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis referentes à saúde com objetivo de obter vantagem econômica, exceto nas hipóteses relativas a prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde, desde que observado o § 5º deste artigo, incluídos os serviços auxiliares de diagnose e terapia, em benefício dos interesses dos titulares de dados, e para permitir:        

I – a portabilidade de dados quando solicitada pelo titular; ou               

II – as transações financeiras e administrativas resultantes do uso e da prestação dos serviços de que trata este parágrafo.

§ 5º É vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde o tratamento de dados de saúde para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneficiários.” (Grifo nosso)

Embora não esteja expresso no texto legal na Resolução CFM nº 2382/2024, depreende-se nas entrelinhas que o banco de dados do ecossistema Atesta CFM deverá ser compartilhado futuramente com outros órgãos estatais, especialmente o INSS, considerando que a autarquia tem interesse direto na redução no custeio da concessão de benefícios e também apenas acatará os atestados médicos emitidos pela plataforma Atesta CFM

Novamente, vale frisar que “os fins não justificam os meios”.

A repressão e combate às fraudes documentais relacionadas ao atestado médico demandam ações interdisciplinares/intersetoriais com assertividade e que não conflitem com os princípios da autonomia da vontade do paciente e profissional, privacidade e intimidade do cidadão.

Por fim, cabe salientar que esta presente análise envolve os elementos textuais da Resolução, não enfrentando diretamente aspectos do Direito Digital envolvido na operacionalização do ecossistema Atesta CFM. Posteriormente iremos enfrentar este outro aspecto, do ponto de vista jurídico.

Um abraço a todos.

Referências bibliográficas:

  1. Lewis D, Weigert A. Trust as a social reality. Social Forces 1985; 63 (4):967-985.
  2. Novo Código de Ética Médica comentado: aspectos práticos e polêmicos, editora CRV. DE Puy, Rodrigo, 2019.
  3. Documentos médicos comentados, editora CRV. DE Puy, Rodrigo, 2021.
  4. Tratado de Direito Médico ético, editora CRV. DE Puy, Rodrigo, 2022.
  5. https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-lanca-plataforma-online-para-combater-a-emissao-de-atestados-medicos-falso-no-brasil – acessado em 10/09/2024

Rodrigo de Puy é médico especialista em Medicina do Trabalho e Patologia. Mestre em Patologia. MBA em Auditoria em Saúde. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Médico. Membro da Comissão de Direito Médico da OAB-MG.

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