Entre 2022 e 2023, houve um aumento de 21,3% das ações judiciais em saúde, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). (1)
Até meados de 2024 e segundo as estatísticas apresentadas pelo CNJ, há 801.720 processos sobre saúde pendentes de julgamento no Brasil. Aproximadamente 497 mil estão relacionados à saúde pública, e outras 318 mil ações refere-se à saúde suplementar. No primeiro semestre de 2024, chegaram à Justiça 306 mil novos processos sobre o tema; até junho deste ano, foram julgados 264 mil processos, o que corresponde a quase 33% do total (2).
Atualmente, temos aproximadamente cerca de 600 mil médicos no país e a perspectiva é que até 2030 alcancemos a marca de cerca de um milhão destes profissionais. Além do crescimento vertiginoso da classe, demais profissões no setor de saúde estão igualmente em franca expansão, tornando o cenário preocupante com o crescimento em hipérbole das ações judiciais em saúde.
Para compreendermos a complexidade dos temas envolvidos nas ações que versam sobre o direito à saúde, temos: “erro médico”, fornecimento de consultas, exames, imunização, insumos ou materiais, internação, leitos, medicamentos, órteses/próteses/meios auxiliares, transplante e vagas como principais demandas da sociedade.
A lógica atual do Código de Processo Civil (CPC) tem que ser mudada de forma URGENTE para que o judiciário brasileiro não sacramente o seu colapso e que o cidadão consiga efetivar seu direito.
COMO É HOJE:
O advogado ajuíza uma ação para seu cliente e o juiz, ao verificar a regularidade dos pressupostos elementares, cita o réu. Composta a relação triangular (autor, juiz, réu) inicia-se o processo.
Ao longo da instrução, muitos destes processos demandarão perícia médica, a “rainha das provas” que irá subsidiar o magistrado no seu livre convencimento motivado, ao final.
LIMITAÇÕES ATUAIS:
1º – Baixa quantidade de acordos judiciais na fase da audiência de conciliação;
2º – Processos morosos, com rediscussão da decisão em 2ª instância, por vezes demorando décadas para serem julgados;
3º – Nas ações envolvendo “erro médico”, a taxa de sucumbência do autor é enorme, em torno de 70-80% das lides.
PROPOSTA DE MUDANÇA LEGISLATIVA:
Todas as ações que versam sobre direito à saúde, em virtude do tema especializado, deveriam incialmente se submeter OBRIGATORIAMENTE à juízo de admissibilidade técnico em perícia médica preliminar ou prova técnica médica simplificada.
Como deveria ser o Processo Civil nestas ações?
O advogado ajuíza uma ação para seu cliente e o juiz, ao verificar a regularidade dos pressupostos elementares, designa uma perícia médica preliminar ou prova técnica médica simplificada, a depender do escopo pericial.
Tal circunstância independe se há ou não pedido de tutela antecipada. Por óbvio, se há um pedido de tutela de urgência, a perícia médica deve ser IMEDIATA.
De posse dos elementos técnicos informativos (havendo quesitos do Autor, Juiz e eventualmente Ministério Público – MP, se há interesse de menor), o juiz decide se a ação deverá ser arquivada por:
I – DECLARAÇÃO DE INÉPCIA DA INICIAL, uma vez que da narração dos fatos não decorreu logicamente o pedido, já que não foram juntados demonstrativos aptos a embasar a pretensão; II- EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, em virtude de ausência de causa de pedir;
III- JULGAMENTO DE TOTAL IMPROCEDÊNCIA da ação, em virtude da ausência de qualquer obrigação “do suposto Réu” em indenizar o Autor, tendo em vista a inexistência de defeito na prestação de serviço ou nexo de causalidade;
IV- Condenação do “autor” (aqui entre aspas, pois ainda não há processo) às custas da perícia médica, considerando o não enquadramento do Autor nos critérios para o páreo da justiça gratuita.
Havendo elementos técnicos para prosseguimento do feito, o juiz passa a citar o Réu, ato contínuo, concluindo então a relação processual triangular.
Neste momento efetivamente temos o processo, e a relação Autor-Juiz-Réu.
Ressalta-se que a perícia médica preliminar embora não possua a participação do Réu (pois ele ainda não foi citado e sequer existe processo), não interfere no contraditório e ampla defesa, considerando que o feito tem apenas a finalidade de depurar inúmeras causas tecnicamente inviáveis e que atualmente congestionam o sistema judiciário brasileiro.
Uma vez composta a relação triangular entre Autor-Juiz-Réu, os procedimentos instrutórios do processo cível em nada se alteram, podendo inclusive ter uma nova perícia médica, com perito DIVERSO àquele que realizou a perícia técnica preliminar.
VANTAGENS DA MUDANÇA LEGISLATIVA:
1º – Depuração dos processos que tramitam no judiciário: conforme dito alhures, 70-80% dos processos que versam sobre “erro médico” sequer existiriam. Tal circunstância iria reduzir drasticamente o acervo de processos em saúde.
2º – Aumento da quantidade de acordos celebrados logo na fase inicial do processo: o Réu, ao ser citado e se inteirar da lide, bem como do laudo médico pericial preliminar e dos fundamentos do magistrado para a instauração do processo, pode se convencer tecnicamente que a resolução de plano do conflito é mais adequada, logo na audiência de conciliação. Neste norte, um segundo filtro (conciliação) já faz nova depuração no acervo de ações que de fato irão seguir para a fase de cognição nas instâncias judiciais.
3º- Redução significativa do estoque de ações que seguirão para a fase de instrução, possibilitando maior celeridade destas ações residuais, bem como maior segurança jurídica nas decisões judiciais (menor acervo de processos por juiz permite que os magistrados possam se dedicar melhor para cada processo individualmente). Portanto, reflete diretamente em benefício direto aos jurisdicionados.
4º- Valorização da perícia médica nos processos em saúde: ao estabelecer a perícia médica preliminar, depreende-se que o auxiliar do juízo tem sua relevância em dois momentos críticos do procedimento: o primeiro, como auxiliar do juízo na admissibilidade técnica; o segundo, como fomentador de prova técnica pericial na instrução do processo e que subsidiará o livre convencimento motivado do juiz.
5º – Redução da indústria do caos ou “indústria do erro médico” e seguradoras: atualmente, em virtude das centenas de milhares de ações, operadoras e profissionais de saúde, hospitais e clínicas se veem compelidos a contratar seguros e grupos de escritório de advocacia para mitigar os riscos operacionais. Desta forma, os custos das operações são majorados e repassados ao usuário, cliente ou mesmo a sociedade (no caso do SUS). Portanto, são penalizados a coletividade (que contrata serviços mais caros) e os prestadores de serviço de saúde (que repassam os custos operacionais para o consumidor).
6º – Maior segurança jurídica aos profissionais de saúde: um processo em desfavor de um médico ou dentista, por exemplo, pode implicar em elevados custos judiciais, apenas “para provar que trabalha corretamente”, sem direito a qualquer ressarcimento, caso o Autor esteja sob o páreo da justiça gratuita. À título de exemplo, estes curstos compõem despesas com advogado, assistente técnico, perícia médica, confecção de diversos documentos (atas notariais, tradução juramentada, dentre outros).
7º – Redução das lides temerárias, “ciranda jurídica”: ao se implantar a perícia médica preliminar, inexistem custas processuais ou honorários de sucumbência, pois não existe o processo neste instante. Todavia, não havendo pertinência técnica para prosseguimento do feito (vale dizer, instauração de processo), o único custo inicial seria o da perícia médica. Neste sentido, dá mais conforto ao magistrado decidir que, havendo elementos para se convencer que o custo pericial pode ser suportado pelo demandante, o mesmo deverá ser condenado a quitar pelo serviço prestado.
8º – Valoriza a boa prática da advocacia. Hoje vemos serem ajuizadas milhares de ações milionárias, a maioria delas sob o páreo da justiça gratuita. Ou seja, no imaginário do Autor e advogado tem-se a segurança de que “se perder, perdeu, mas não tem que pagar nada. Mas se ganhar, pode ser tentado um valor vultuoso.” A mudança legislativa afugentaria aqueles oportunistas e advogados que almejam estabelecer a “advocacia predatória” ou mesmo “advocacia de boutique” com foco no proveito econômico pessoal e não na dignidade da profissão vicária em pleitear direito alheio.
Espero contar com o apoio do CFM, CRO, demais entidades de saúde, bem como entidades da advocacia e do poder judiciário para levar tal proposição ao Congresso Nacional com a finalidade de uma alteração legislativa que beneficia todos.
Um abraço a todos!
Rodrigo de Puy é médico e advogado.
Contatos profissionais: Instagram: @drdepuyrodrigo
Email: contato@rodrigodepuy.com.br
Site: www.rodrigodepuy.com.br
Referências bibliográficas:
1- https://www.metropoles.com/saude/judicializacao-gastou-ate-100-da-verba-da-saude-em-250-cidades#google_vignette – acessado em 15/11/2024
2- https://www.cnj.jus.br/semana-nacional-da-saude-no-judiciario-impulsionara-julgamento-de-processos/ (acessado em 15/11/2024).
3- DE PUY, Rodrigo, 2024.Curso de Perícia Médica Administrativa e Judicial – editora Lujur.
4- DE PUY, Rodrigo, 2022. Tratado de Direito Médico ético – editora Lujur.
5- DE PUY, Rodrigo, 2021. Documentos médicos comentados – editora Lujur.
6- DE PUY, Rodrigo, 2019. Novo Código de ética médica comentado: aspectos práticos e polêmicos. Editora CRV.