23 jun 2016

Inapto seletivo: uma carta fora do baralho

postado em: Coluna do Lenz

Nenhum comentário.

Mas o que é isso? Mais essa? Não basta a dificuldade de definir a aptidão ou inaptidão para o trabalho? Agora me vem com essa, inapto seletivo!

Ora, se é apto, é apto. Se inapto, é inapto e pronto!

Sinceramente, o que você concluiria diante de um exame admissional, se apto ou inapto, em uma dessas situações: perda auditiva para tele atendimento ou local onde exista o risco ruído, mutilado de alguns dedos da mão para atividade com alta exigência biomecânica para os membros superiores, personalidade “emocionalmente instável” para atendimento ao cliente no setor de reclamação em uma operadora de telefonia móvel, um “gago” para professor, baixa compleição física para manuseio de carga em expedição, epiléptico para uma linha de produção, baixa visão em um olho para operador de empilhadeira, escoliose para manuseio de cargas, etc.

Como se pode ver o cenário não é tão confortável assim, binário, ou seja, apto ou inapto, pois parece não ser tão bem definida a desejada linha de conforto que separa as duas conclusões.

A aptidão laboral, segundo a nossa legislação trabalhista, em especial a NR7.4.4.3, é formalizada em um documento, o ASO (Atestado de Saúde Ocupacional), que determina os seguintes critérios: individualidade (um ASO para cada trabalhador: nome do trabalhador), temporalidade da realização do exame (exame, em uma determinada data), ambiência laboral e controle médico (em uma determinada empresa, com os riscos e exames médicos definidos), responsabilidade técnica (com o nome do médico coordenador) e, por fim, a aptidão laboral (se apto para as funções que vai exercer, exerce ou exerceu (passado, presente ou futuro).

Assim, ao afirmar que um trabalhador está apto, significa dizer que um determinado trabalhador, em uma determinada data, em um determinado ambiente laboral, com determinados riscos, encontra-se apto a um determinado trabalho que exercerá (admissional e mudança de função), ou que exerce (periódico ou demissional), de acordo com a responsabilidade técnica de um médico.

Portanto, o conceito de aptidão depende destas variáveis, ou seja, trabalhadores diferentes podem não estar aptos ao mesmo trabalho, assim como o mesmo trabalhador pode estar apto para uma mobilidade funcional (mobilidades funcionais: admissional, periódico, mudança de função, demissional, retorno ao trabalho) e inapto para outra, o mesmo ocorrendo em datas diferentes (apto no dia da demissão, porém no dia do exame médico demissional fraturou a perna) em exposição a riscos diferentes (um trabalhador epiléptico operar máquinas em funcionamento), entre outras infinitas combinações.

Isso sem contar que existem também vários outros critérios de aptidão laboral, como aqueles dos representantes dos demais atores sociais, como os médicos securitários, médicos legistas, médicos assistentes, etc.

O INSS, conforme a legislação previdenciária, adota o conceito de inaptidão como sendo uniprofissional quando alcança uma atividade específica, multiprofissional quando alcança diversas atividades e omniprofissional quando abrange toda e qualquer atividade.

Tal dificuldade pode ser evidenciada na frustrada tentativa de tal padronização pela CIF (Classificação internacional de funcionalidade), frustração esta, confirmada até mesmo pelo total desconhecimento de sua existência por grande parte de nossos leitores, que só ao ler este texto tomaram conhecimento de sua existência. Tal desconhecimento não se observa por exemplo na existência da CID (Classificação internacional de diagnósticos), de uso corriqueiro de todos.

Sem a pretensão de uma visão reducionista, como que tentando tornar simplista algo que efetivamente não é, sugerimos três critérios mínimos que devem ser atendidos em um exame médico ocupacional para a conclusão da aptidão laboral, ou seja: (1) o candidato atende às exigências da tarefa, (2) não expõe a riscos diferenciados a si próprio ou (3) a terceiros? Se atende às três exigências, está apto!

É, parece facilitar um pouco. Mas, o que você concluiria quanto à aptidão laboral em situações como deficiente auditivo para a função de músico, gago para a função de ator ou cantor, epiléptico para a função de militar, surdo e mudo para jornalista, deficiente físico com paralisia de três dedos da mão para pianista, entre outros?

Se você concluiu por inapto, você acaba de reprovar em um exame médico, músicos com perda auditiva como Eric Clepton, Beethoven e Ernesto Nazaré, gagos como Marilyn Monroe, Bruce Willis, Murilo Benício, Nelson Gonçalves, Julia Roberts, Marcos Frota, Malvino Salvador, músico deficiente físico como o pianista João Carlos Martins, epilépticos como Isaac Newton, Anthony Hopkins, Gustave Flaubert, Napoleão Bonaparte, Van Gogh, jornalista cega e surda como Helen Keller e até o gênio contemporâneo Stephen Hawking, portador de Esclerose Lateral Amiotrófica. É, parece existir um limite estreito entre a inaptidão e a discriminação.

E o assunto é tão sério que existem vários estudos sobre ações trabalhistas em fases pré-contratuais, ou seja, ações trabalhistas decorrentes de conflitos ainda na fase pré-contratual, em várias situações entendidas como sendo discriminatórias com ações ajuizadas tanto contra instituições, quanto contra pessoas, em especial, médicos do trabalho, mas também gestores de RH, etc.

A magnitude da responsabilidade na determinação da aptidão laboral fica ainda mais evidente quando considerados os seus desdobramentos, as suas consequências, em inaptidões que expulsam pessoas do mundo do trabalho em plena idade produtiva, alijados de seus projetos de vida.

Ora, existem inaptidões laborais confortáveis, até esperadas, como aquelas que resultam em algum ganho para o trabalhador inapto, como um benefício previdenciário (auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-acidente, enquadramento como deficiente), algo como quem bate e assopra, assim como que agraciado com um sim, na forma de um ganho secundário, após o não, representado pela caracterização da inaptidão laboral. Tais situações são bem amparadas legalmente pela ampla legislação brasileira, onde são definidas as condições para definição de tais incapacidades e concessão dos respectivos benefícios, como os critérios dos textos legais da lei 8213, decreto 5296, anexo III do Decreto 3048, etc.

Mas existem situações, e que não são poucas, em que você percebe que o trabalhador não será aceito pelo mercado de trabalho, mas você não pode fazer nada por ele, por não se encaixar em nenhuma dessas benesses de nossa legislação, como auxílio-doença, aposentadoria, auxílio-acidente, enquadramento como deficiente.

Tais situações são equidistantes do apto e do inapto, ou seja, nem apto, nem inapto, sendo seletivamente inaptos pelo mercado de trabalho, ou seja, este é o “inapto seletivo”, que existe um número muito maior do que imaginamos, porém ninguém preocupa com estes que, não se enquadram nas leis de cotas para deficientes ou de benefícios previdenciários e, também ninguém quer contratar para evitar “problemas futuros”.

A ergonomia, imbuída de sua função maior, “adaptar o trabalho ao homem”, pode muito ajudar melhorando a versatilidade dos postos de trabalho, de modo a se adequar às diferenças humanas, não somente aos deficientes “legais”, mas também aos inaptos seletivos.

Ora, como você pode ver, o inapto seletivo é algo que existe sim e, que já incomodou muito você em algum momento, que só não existe para a legislação trabalhista, mas na realidade são bem numerosos. Portanto, antes de dizer, inapto seletivo, era só o “que me faltava”, responda sinceramente: e falta mesmo?

Basta parar e contar: quantos inaptos seletivos já tiraram o seu sossego neste ano?

Autor: Dr. Lenz Alberto Alves Cabral (MG) – Médico do Trabalho, Especialista em Ergonomia pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Professor convidado da Pós-Graduação em Medicina do Trabalho da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Diretor da PROERGON – Assessoria e Consultoria em Segurança e Saúde do Trabalhador / Ergonomia, autor do livro “Abre a CAT?” (Editora LTr). Contato: www.proergon.com.br

O Dr. Lenz escreve mensalmente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Lenz”

Assine a newsletter
saudeocupacional.org

Receba o conteúdo em primeira mão.