Mudei para a Bahia em 2016, mudando radicalmente minha vida profissional e pessoal. Quando estava em São Paulo, tinha 4 empregos e ainda me aventurava como presidente de uma cooperativa médica e com minha própria empresa. Decidi que para exercer a Medicina do Trabalho em sua plenitude, precisava mudar minha vida. Não foi fácil. A carta abaixo, escrita pelo Dr. Cláudio Silva, então coordenador do PCMSO da empresa que eu assumiria na Bahia, é um retrato fiel das dificuldades, caminhos e certezas da desafiadora especialidade que escolhemos.
“Ah! Amigo, amigo meu! Mobilizaste-me hoje ao dizer-me ver honestidade em meus olhos e sensibilidade na minh’alma! Sim! Tu o fizeste! Ao me abraçares emocionado, tu mostraste a mim, não o que sabia (ou presumia!) eu de mim mesmo, mas, principalmente, que existe outrem capaz de ver o que de puro e caro me esforcei por preservar e a ti ofertei na gratuidade do recepcionar-te em locus estranho às tuas origens e no confranger-te com a incerteza da tua aventura! És meu par, por isto, na minha desaprendível aventura do acreditar no Ser (assim mesmo: Maiúsculo!) que o Divino bafejou em cada homem ou mulher, ainda nos que matam e se matam, mesmo nos que traem ou são traídos!
Dou-te a minha Bahia de devoção, meus Orixás e Santos; dou-te mais que tudo, o meu braço quando de algum tropeço e em forças que me forem possíveis! Tens agora, por tua crença e sensibilidade, uma amizade dócil, um ouvido apurado e, eventualmente, algumas palavras que, tratadas por ti, ser-te-ão úteis, quiçá desempatadoras de dilemas que, algures, enfrentarás! Lembras de Fernão Capelo? Não te envergonhes de seres gaivota do alto espaço desbravando o céu e o azul! Médicos, como somos, seremos tentados (já o fui muito mais que tu; és jovem, ainda!) à guerra dos peixes que, fáceis, vêm mortos à areia estéril do beiral do oceano! Mas, Seres (não esqueças da Maiúscula!), mais que Médicos, não nos permitamos esquecer a infinitude das águas revoltas, da sua profundidade ou do prazer do esvolear-se nas alturas inatingíveis para as gaivotas da praia!
Ah!, sim! Não te iludas com a tecnologia! Ela é traiçoeira! Não há máquina que nos ensine a escutar (não ´auscultar´) um paciente ou, como para nós, ´médicos de fábrica´, um trabalhador! Não há ´sistema´ que nos dê o entendimento das agruras do homem que disputa com a maquinaria os prêmios de produção ou de segurança! Prepara-te! Ser-te-á muito mais freqüente que o foi para mim (há três décadas!) ouvir lamentos que apalpar abdomes; ver homens maduros chorarem na demissão, que examinar-lhes um eletrocardiograma ou uma ressonância magnética. Verás homens e mulheres esmagados pela selvageria do capital, quando pretenderias tão somente discutir-lhes os hemogramas!
Se a tudo tu resistires mantendo-se o Ser que me mostraste hoje – enquanto empreendes tua própria luta pela sobrevivência e afirmação enquanto Ser e Médico (de novo: com Maiúsculas!) – eu me tornarei teu eterno devedor pela oportunidade desta Crônica! E tu terás dignificado, mais que a escolha profissional ou a opção baiana, tua condição de Espelho do Divino! Por outro lado, se – por desiderato, destino ou ´acidente´ – te entregares às facilidades das areias dos salários, da mercantilização do teu saber ou, pior, se venderes tua alma aos interesses menores do ´apenas lucro´ e do ´apenas capital´, ainda assim te serei grato! Pela oportunidade da Esperança!
AO AMIGO, EDUARDO ARANTES
CLAUDIO SILVA” [Salvador-BA, Terça-feira, 18/07/2006]
Autor (a): Dr. Eduardo Arantes – Médico com especialização em Medicina do Trabalho pela Universidade São Francisco de São Paulo, Ergonomia pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e em Gestão de Saúde pela FGV. Autor dos livros: O Retorno Financeiro de Programas de Promoção da Segurança, Saúde e Qualidade de Vida nas Empresas, Ciências da Vida Humana e o recém-lançado Crônicas de Saúde, Ciência e Cotidiano. Atualmente é Diretor Técnico na Beecorp – Bem Estar Corporativo.
O Dr. Eduardo Arantes escreve mensalmente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Edu”.