Prezados leitores.
Há algumas semanas chegou até mim um documento confeccionado pelo COFFITO (Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional). Muito bem escrito e com o título “Perícia Fisioterapêutica – Perícia Judicial e Assistência Técnica”, entre outras coisas, com relação às doenças osteomusculares, o referido documento afirma (p. 09): “[No] diagnóstico nosológico, o que identifica doenças, em que a controvérsia no processo for dada pela dúvida da presença ou não da doença, a perícia é médica. Porém, quando a doença já for diagnosticada e claramente comprovada nos autos, e a dúvida for sobre o nexo causal e a capacidade funcional residual que a doença está causando no periciado, a perícia é fisioterapêutica.”
Defendendo que o estabelecimento do nexo causal/concausal entre a doença osteomuscular e a atividade laboral é de competência técnica do fisioterapeuta, o documento prossegue (p. 10): “De acordo com a CBO e as resoluções profissionais da Fisioterapia, o estabelecimento ou não do nexo causal/concausa necessita do conhecimento técnico científico da cinesiopatogenia (quais movimentos corporais que são responsáveis por causar a doença em questão).”
(Obs.: confira a íntegra do documento do COFFITO, clique AQUI.)
Com todo respeito, permito-me discordar e apresento, para tanto, minhas singelas justificativas.
O documento do COFFITO afirma que “quando a doença já for diagnosticada e claramente comprovada nos autos, e a dúvida for sobre o nexo causal e a capacidade funcional residual que a doença está causando no periciado, a perícia é fisioterapêutica.” [grifo meu] Uma interpretação possível dessa afirmativa parte do princípio genérico (pra mim, equivocado) de que quando a doença (diagnóstico nosológico) já estiver descrita nos autos do processo (através de atestados e relatórios médicos prévios, laudos de exames complementares, etc.), não se coloca mais em dúvida a real existência dessa moléstia. O COFFITO sugere não haver necessidade de maiores investigações quanto ao conteúdo dos documentos já elencados nos autos, mesmo que estes documentos tenham sido produzidos e juntados por alguma das partes do processo (por exemplo, o reclamante). E esse entendimento não é só do COFFITO. No mesmo sentido, por exemplo, vem a Súmula n. 06 do TRT-AL, que assim coloca:
“LAUDO PERICIAL. DOENÇA OCUPACIONAL. ELABORAÇÃO POR FISIOTERAPEUTA. VALIDADE. Não há óbice a que o fisioterapeuta, devidamente registrado no conselho de classe, atuando como auxiliar do Juízo, examine as condições fáticas em que prestado o trabalho, de modo a identificar possível nexo de causalidade, desde que seja diagnosticada a enfermidade por documentação médica.” [grifo meu]
Com todas as vênias, reputo como perigoso e equivocado considerar que documentos produzidos pelas partes do processo não são parciais. São. Até por uma questão semântica: se são das partes, são parciais! E sob judice, tudo que for parcial (atestados, laudos, petições, etc.), ainda que de conteúdo irretocável, deve necessariamente passar por uma nova avaliação, validação ou negação, dos agentes imparciais do processo, aqui me referindo especialmente ao magistrado e ao perito judicial. Por que isso? Pois os processos judiciais e seus atos partem sempre da dúvida, e não da certeza. Tanto assim que o alvo maior da Justiça (em seus milhares e milhares de processos) é o esclarecimento da verdade. Se partíssemos da premissa de que todos os documentos anexados aos autos fossem verdadeiros em seus conteúdos, bastaria a leitura desses documentos para a resolução de uma causa! Desnecessária seria a perícia (e o Poder Judiciário como um todo!).
Para exemplificar esse raciocínio de que os agentes imparciais de um processo judicial “sempre partem da dúvida”, transcrevo a Orientação Jurisprudencial (OJ) n. 278 da SDI-1 do TST:
“A realização de perícia é obrigatória para a verificação de insalubridade. Quando não for possível sua realização, como em caso de fechamento da empresa, poderá o julgador utilizar-se de outros meios de prova.”
Percebam: o texto não diz que a perícia se basearia no laudo de insalubridade, previamente confeccionado por um profissional de confiança da empresa e anexado aos autos. E nem poderia, uma vez que esse laudo, tendo sido encomendado e patrocinado pela reclamada, seria visceralmente parcial e, portanto, jamais poderia ser usado como verdade inquestionável, ainda que perfeito do ponto de vista técnico.
Ao contrário, o texto da OJ coloca como regra substancial, para o esclarecimento da verdade, a validação (ou não) desse laudo prévio mediante a realização de perícia (obviamente, por um profissional da confiança do magistrado). Apenas como exceção (em caso de impossibilidade de realização da perícia, por exemplo) é permitido o uso de outros meios de prova, como laudos e outros documentos já encartados nos autos (a chamada “perícia indireta”).
Analogamente, não é característica de um cuidadoso perito admitir como verdade irrefutável, por exemplo, um atestado já anexado aos autos, assinado pelo médico assistente do reclamante, atribuindo a este último determinada doença (diagnóstico nosológico). O atestado pode até ser corretíssimo em seu conteúdo, mas, por ser um documento parcial (obtido por uma das partes) necessita ser validado através de meticulosa avaliação pericial no reclamante, feita através de anamnese e exame clínico (e complementar, se for o caso). Tal análise objetiva a confirmação/negação do alegado diagnóstico nosológico e seu prognóstico, ato privativo dos médicos como nos ensina o inciso X, art. 4 da Lei n. 12.842/2013 (Lei do Ato Médico). Isso é reconhecido pelo próprio documento do COFFITO quando diz (p. 10): “A perícia médica tem como premissa estabelecer o diagnóstico nosológico, dizer se o requerente está ou não doente.”
Dessa forma, para o estabelecimento do nexo (con)causal, a confirmação/negação do diagnóstico nosológico alegado nos autos pelo reclamante é imprescindível. Mas não é só isso! Em alinho literal com o art. 2 da Resolução CFM n. 1.488/1998, “para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, além do exame clínico (físico e mental) e os exames complementares, quando necessários [justamente buscando a confirmação/negação do alegado diagnóstico nosológico – grifo meu], deve o médico considerar:
I – a história clínica e ocupacional, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal;
II – o estudo do local de trabalho;
III – o estudo da organização do trabalho;
IV – os dados epidemiológicos;
V – a literatura atualizada;
VI – a ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhador exposto a condições agressivas;
VII – a identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros;
VIII – o depoimento e a experiência dos trabalhadores;
IX – os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde.”
Conquanto muitos dos itens acima não sejam atos privativos dos médicos (ex.: estudo do local de trabalho), toda essa análise só se justifica após a confirmação/negação do diagnóstico nosológico por parte do perito. Sim! Pois antes de se avaliar se a doença é ocupacional (se tem ou não nexo com o trabalho), é imperativo avaliar se existe ou não a própria doença. Não havendo diagnóstico nosológico, não há doença. E não havendo doença, fica sem sentido falar em “doença ocupacional” e, consequentemente, fazer o estudo de um possível nexo.
Assim, “tentando simplificar o insimplificável”, o nexo de con(causalidade) decorre de uma avaliação conjunta da existência da própria doença – diagnóstico nosológico (ato privativo dos médicos e que só se faz através da análise do periciando, e não apenas da avaliação documental do processo) somada com o estudo pormenorizado do local de trabalho.
“Viajando” um pouco mais, percebo que o Nexo Técnico Epidemiológico (NTEP) foi além: tentou “hiper-ultra-mega-simplificar o insimplificável” quando presumiu o nexo entre o trabalho e a doença através da correlação sistemática das variáveis CID (diagnóstico nosológico) e CNAE (número que, por si só, produz um “retrato muito infiel” do ambiente laboral e seus riscos). Não é à toa que o NTEP apresenta incoerências importantes nas atribuições de alguns nexos, consequência, ao meu ver, da tentativa impossível de “hiper-ultra-mega-hipersimplificar o insimplificável”.
Mesmo com o NTEP, no entanto, o perito médico do INSS (e só ele!) tem a prerrogativa de desfazer justificadamente um equivocado nexo presumido via NTEP entre doença e trabalho (parágrafo 1 do art. 21-A da Lei 8.213/1991 combinado com art. 322 da Instrução Normativa INSS n. 77/2015), o que mais uma vez me reforça a tese de que, num processo judicial, assim como ocorre num processo administrativo junto ao INSS, o diagnóstico nosológico de uma doença e o estabelecimento do nexo (con)causal entre essa doença (qualquer tipo de doença) e trabalho é prerrogativa exclusiva dos médicos.
Alguém dirá: “mas e se o diagnóstico nosológico já tiver sido definido, dentro do próprio processo, por um perito médico (e não pelo médico assistente do reclamante), poderá o fisioterapeuta estabelecer/excluir o nexo de (con)causalidade entre essa doença e o trabalho?” Essa é uma situação ainda incomum uma vez que, pelo Princípio da Economia Processual, o mesmo profissional que faz o diagnóstico nosológico é também quem costuma estabelecer ou descartar o nexo de (con)causalidade entre a doença e o trabalho. Mas mesmo ocorrendo tal situação, é discutível a competência legal de um fisioterapeuta para o estabelecimento do nexo (con)causal. Por que? Pois apesar de seus inegáveis limites, a CID (Classificação Internacional de Doenças) continua sendo hegemônica na codificação dos diagnósticos nosológicos, formulados privativamente pelos médicos. Conforme a própria Resolução COFFITO n. 370/2009, in verbis, “o Fisioterapeuta e o Terapeuta Ocupacional adotarão a Classificação Internacional de Funcionalidade, incapacidade e saúde (CIF), segundo recomenda a Organização Mundial de Saúde (OMS), no âmbito de suas respectivas competências institucionais”, e não a CID. E não há como falar de “doença” sem falar da CID. Não há como estabelecer nexo entre doença e trabalho sem conhecer o CID da doença primeiramente. Em suma, apesar da importância do chamado “diagnóstico cinesiológico-funcional”, ato fisioterapêutico, a correta configuração ou exclusão do nexo (con)causal entre doença e trabalho passa inevitavelmente pelo conhecimento do nexo nosológico em toda sua amplitude.
Para o bem da verdade e fomentando o amplo debate sobre o tema objeto deste texto, devo dizer que o TST (Tribunal Superior do Trabalho) já decidiu de forma diversa ao que ora defendo, vejamos:
“EMENTA: RECURSO DE REVISTA. LAUDO MÉDICO REALIZADO POR FISIOTERAPEUTA – DOENÇA PROFISSIONAL LER/DORT. Não se verifica óbice legal para a elaboração de laudo pericial por profissional de saúde, fisioterapeuta, para avaliação de nexo de causalidade entre a doença que acomete o autor e o seu trabalho desempenhado na reclamada. […].” (Processo: RR-10161-84.2013.5.11.0001)
Tema do nosso Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho, e quando não há médicos dispostos ou disponíveis para uma perícia sobre hipotética doença ocupacional: pode o juiz valer-se de um fisioterapeuta para esse encargo? Como a pergunta é dirigida a um juiz, deixo a resposta por conta do Juiz do Trabalho, Dr. Rodolfo Pamplona Filho (BA). Confiram no vídeo abaixo:
À vontade para os sempre bem-vindos, desde que respeitosos, comentários, alinhados ou contraditórios (tanto com relação ao texto escrito, como com relação as palavras do Dr. Pamplona)!
Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Editor do “Reflexões do Mendanha”, no site www.saudeocupacional.org. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.