1) Numa perícia que envolve a avaliação de nexo (con)causal entre doença e trabalho, o juiz pode nomear um profissional de saúde não médico?
R.: Não deveria pela Lei n. 12.842/2013 (Lei do Ato Médico). Pra mim, o estabelecimento do nexo de (con)causalidade entre doença e trabalho é ato médico, e justifico isso melhor num texto que pode ser lido AQUI.
2) Mas essa nomeação acontece na prática?
R.: Sim. E os juízes que a fazem se justificam com base no CPC, art. 156, parágrafo 5: “Na localidade onde não houver inscrito no cadastro disponibilizado pelo tribunal, a nomeação do perito é de livre escolha pelo juiz e deverá recair sobre profissional ou órgão técnico ou científico comprovadamente detentor do conhecimento necessário à realização da perícia.”
3) Mas essas nomeações acontecem mesmo quando, na localidade, há peritos médicos inscritos no cadastro. E aí?
R.: O entendimento dos magistrados que as fazem é que, mesmo havendo médicos peritos inscritos no cadastro, caso nenhum deles aceite o encargo pericial (seja por baixos valores de honorários, seja pela não antecipação de honorários, etc.), é possível fazer uso do disposto no CPC, art. 156, parágrafo 5 (vide texto da lei na questão acima). E uma vez que um profissional não médico é indicado, pode ser que naquela Vara isso se torne o costume.
4) Mas isso não configuraria crime de exercício ilegal da medicina por parte do profissional não médico?
R.: Não. Pois como foi o juiz quem o nomeou, a atuação do profissional não médico decorreria agora do chamado “cumprimento do dever legal”, o que exclui a ilicitude do ato, nos termos do Código Penal, art. 23, inciso III: “Não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.”
5) Mas existem muitos juízes que acham que a atuação de não médicos em perícias que envolvam nexo de (con)causalidade entre doença e trabalho é sim exercício ilegal da medicina. E aí?
R.: Se acham mesmo, eles passam a estar obrigados a denunciar seus pares que fazem tais nomeações. Sim! Pois os juízes que nomeiam esses profissionais não médicos seriam os mandantes do crime de exercício ilegal da medicina, e como tais, também seriam criminosos. E cometeriam pelo menos dois crimes tipificados no Código Penal ao autorizar/mandar/nomear os não médicos a fazerem o que a lei não lhes permite: o de prevaricação (art. 319, CP) e o de condescendência criminosa (art. 320, CP).
6) Mas um juiz não é obrigado a denunciar o outro que comete crime. É?
R.: Se o crime for cometido no exercício da magistratura, é sim. Está no art. 4 do Código de Ética da Magistratura: “Exige-se do magistrado que seja eticamente independente e que não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro colega, exceto em respeito às normas legais.”
7) Por que os juízes fazem essa nomeação de não médicos para atuarem em perícias que deveriam ser médicas? É de pirraça? É por maldade contra a classe médica?
R.: Penso que não. Conforme a Lei Orgânica da Magistratura, os juízes são obrigados a julgar e a cumprir os prazos razoáveis que lhes competem, sob pena de eles próprios – os juízes – serem penalizados pelos órgãos reguladores do Judiciário. Isso os obriga a “fazer o processo andar” com os instrumentos que possuem.
Noutra discussão, quando os peritos médicos não aceitam o encargo pericial devido aos baixos honorários, pouco resta ao magistrado se não a nomeação de outro perito que “faça o processo andar”, uma vez que os juízes de primeira instância não possuem competência legal para alterar as tabelas de honorários e/ou aumentar a disponibilidade orçamentária dos tribunais para esse pagamento. E após a Reforma Trabalhista, até a exigência de honorários prévios feita às partes foi textualmente proibida, o que complicou ainda mais esse cenário que já estava complicado.
8) Mas estamos falando de peritos nomeados pelo juiz. Se falarmos de assistentes técnicos não médicos em perícia médica, aí seria crime. Certo?
R.: Nesse caso não há que se falar mais em “cumprimento do dever legal”, já que é a parte – e não o juiz – quem indica o assistente técnico. O que podemos aventar é um confronto entre a Lei do Ato Médico (que diz que a perícia médica é um ato médico, o que indica que a assistência técnica em perícia médica também o seja) e o CPC, quando este último diz, no art. 466, parágrafo 1, de forma ultrassimplificada, porém bastante clara, que “os assistentes técnicos são de confiança da parte e não estão sujeitos a impedimento ou suspeição”.
Aqui, podemos estar diante do que no estudo do Direito recebe o nome de “antinomia”, ou seja, quando há a presença de duas leis aparentemente conflitantes (no caso, Lei do Ato Médico e CPC), gerando dúvidas sobre qual delas deverá ser aplicada no caso concreto.
Para solucionar esse conflito de normas, a doutrina jurídica apresenta algumas alternativas, que devem ser usadas sucessivamente: (a) critério hierárquico (norma superior prevalece sobre norma inferior); (b) critério da especificidade (norma especial prevalece sobre norma geral que trate do mesmo tema); (c) critério cronológico (norma posterior prevalece sobre norma anterior).
No caso, como há “empate” no critério hierárquico (Lei do Ato Médico e CPC são leis ordinárias), caberá ao magistrado avaliar qual é a lei mais específica para o assunto “assistente técnico pericial”. Parece que os juízes entendem que o CPC é mais específico. Por que? Pois nenhum até hoje qualificou essa atuação do profissional não médico como crime, mesmo sendo bastante provocados a isso. Nunca houve sequer uma única detenção por exercício ilegal da medicina, conforme prevê o art. 282 do Código Penal. E provavelmente, por esse motivo, não haverá. Que nossas análises jamais sejam desconectadas da realidade presente e das palpáveis possibilidades futuras!
Ah… e para os que ficaram na dúvida quanto ao critério da especificidade, sobra o critério cronológico. Aí não há dúvida: vence o CPC, que é de 2015 (a Lei do Ato Médico é de 2013).
9) E agora?
R.: Talvez seja o momento de aproveitar a oportunidade para fazermos várias reflexões:
a) E se os não médicos “saíssem de cena” de uma vez, o cenário para o mercado de trabalho médico, no âmbito da Justiça, melhoraria em que proporção, sobretudo após a Reforma Trabalhista? Provavelmente não seria na mesma proporção que essa luta quase raivosa está sendo travada.
b) Será que essa luta que muito valoriza as selfies com os juízes; os gritos de criminalização dos não médicos que atuam na área pericial; e censuras e ameaças de punição aos que não concordam com a estratégia dominante do movimento; não é apenas uma cortina de fumaça que esconde o imenso abismo que as próprias – e caras – entidades médicas, por omissão histórica, sobretudo nas últimas três décadas, colocaram aqueles a quem representam? Seria coincidência que esse alvoroço e conclame de “união dos médicos contra os não médicos” tenha sido levantado justamente num momento de pagamento de anuidades?
c) A luta dos médicos deve continuar. Sempre. Mas mesmo que em sentenças isoladas tenha dado certo, esse é mesmo o caminho correto? Ou há algum risco futuro de ridicularização de toda uma classe por parte do judiciário e da sociedade, se as mesmas estratégias forem mantidas?
10) Falar é fácil. De que adianta essas reflexões baratas? Não adianta nada ficar criticando o movimento que está sendo realizado e não propor soluções. Sugira soluções.
R.: Primeiro, é preciso aceitar que as perícias e assistências técnicas no âmbito da Justiça do Trabalho irão diminuir substancialmente em número após o advento da Reforma Trabalhista. E isso não tem absolutamente nada a ver com a atuação dos profissionais não médicos nessa seara. Pra mudar esse cenário, só voltando às configurações legais do período anterior a reforma.
Para evitar que não médicos atuem como assistentes técnicos em perícias médicas, é preciso mudar o art. 466, parágrafo 1 do CPC, por exemplo, para: “os assistentes técnicos são de confiança da parte, não estão sujeitos a impedimento ou suspeição, e necessariamente devem ter a mesma profissão do perito escolhido pelo juiz”. E pra mudar uma lei, a luta é no Congresso Nacional e na Presidência da República, não há outros caminhos. E é provável que mais categorias profissionais teriam muito interesse em lutar por esse pleito também, por exemplo, os engenheiros.
Para evitar que juízes nomeiem profissionais não médicos como peritos em trabalhos que envolvam nexo de (con)causalidade entre doença e trabalho, uma estratégia, por exemplo, seria ao invés de tentar tentar incessantemente e sem sucesso criminalizar esses profissionais e os próprios juízes (uma vez que, supostamente, como vimos acima, eles estão inevitavelmente juntos em muitos crimes que cometem), em ação articulada pelas entidades representativas e durante um tempo pré-estabelecido, que os médicos se colocassem amplamente e verdadeiramente à disposição dos magistrados para realização de perícias, e os tentassem convencer de que o laudo pericial médico é mais qualificado do que o trabalho dos profissionais não médicos. Essa sugestão vem do modelo concorrencial do mercado. Antes de falar em aumento de ganhos, grandes grupos empresariais ocupam todos os espaços, mostram disponibilidade, e dominam o território. Pelas regras do capitalismo, isso costuma funcionar. E talvez aqui funcionasse também, não é a toa que em que em alguns estados do Brasil a atuação dos não médicos em perícias que envolvem nexo de (con)causalidade entre doença e trabalho é bem mais rara. Uma hipótese para justificar isso, seria a de que nesses estados a disponibilidade dos peritos médicos à Justiça do Trabalho esteja maior.
Enfim, o momento é sim de união, de ação, mas, sobretudo, de analisar as estratégias corretas. O prejuízo já aconteceu. A vaidade precisa diminuir. Os motores precisam estar ligados em potência máxima, mas para o rumo certo. E a estrada será longa.
O buraco é mais embaixo, amigos.
Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas, e da Jornada Brasileira de Psiquiatria Ocupacional. Coordenador do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações. Colunista da Revista PROTEÇÃO.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.
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