23 ago 2018

A morte de quem salvou tantas vidas

postado em: Coluna do Pablo

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Aquele não foi um dia de semana qualquer. Enquanto muitos se dirigiam para outra jornada de trabalho, uma família sentia a dor de uma saudade recente. E, ao lado dessa família, vários amigos médicos se perguntavam por que alguém que tantas vidas salvara decidira firmemente pôr fim à própria.

O vocábulo “suicídio” surgiu na Inglaterra em 1642, na obra Religio Medici (A Religião do Médico), do escritor Thomas Browne. Entretanto, quem propriamente difundiu o termo foi Desfontaines, um abade francês, a partir de 1734. Esse vocábulo é a junção das palavras latinas sui (si mesmo) e caederes (ação de matar) e expressa, em várias línguas e culturas, a ação pela qual o ser humano põe fim à própria existência.

Desde os primórdios, o suicídio é assunto envolto de grande estigma social. Nos séculos V e VI, por exemplo, os Concílios de Orleans, Braga e Toledo proibiram as honras fúnebres aos suicidas e determinaram que mesmo aquele que não tivesse obtido sucesso em uma tentativa deveria ser excomungado.

O comportamento suicida abarca a ideação suicida, as tentativas frustradas e a efetivação do suicídio (MANN e ARANGO, 1992 apud BAPTISTA, 2004).

Atualmente, o suicídio propriamente dito é considerado como “todo caso de morte que procede direta ou indiretamente de uma ação, positiva ou negativa, realizada pela própria pessoa, como uma expressão inequívoca, implicando assim em sofrimento e impacto profundos nos familiares. Esse fenômeno provém de uma aflição individual intensa e pode ser evitado a partir de cuidados especializados” (DURKHEIM, 1982 apud KÓVACS, 1992).

O que nem todos sabem, entretanto, é que a classe médica está entre os seus principais representantes. “É surpreendente que a taxa de suicídio entre médicos seja maior do que entre os militares, profissão considerada muito estressante” – salientou a Dra. Deepika Tanwar, do Programa de Psiquiatria do Harlem Hospital Center, na cidade de Nova York.

Estudos internacionais demonstram que a prevalência de suicídio entre os médicos é cerca de 70% maior que o observado na população em geral. Estimativas da American Foundation for Suicide Prevention indicam que, em média, 300 a 400 médicos cometem suicídio por ano em todo o mundo – média de uma morte por dia!

Pressões e estresses da profissão, jornadas de trabalho árduas e extenuantes, privação do sono, ambientes laborais insalubres, dificuldades inter-relacionais com pacientes, problemas conjugais e/ou familiares, acesso mais facilitado a meios de autoextermínio, vivência direta com o sofrimento e com a morte, plantões noturnos, pouco tempo para a família, poucas atividades de lazer, vazio espiritual, automedicação, processos judiciais, insatisfação com a especialidade médica e problemas com o Conselho Regional de Medicina são alguns dos principais fatores que levam a essa alarmante estatística.

“Passei por um julgamento por negligência. A pior experiência da minha vida. Queria morrer. Eu não estava tentando ferir o paciente. Estava tentando ajudar… Médicos precisam ser perfeitos o tempo todo. Quando sou tratado pior do que um ladrão ou um trapaceiro, é frustrante. Frustração leva à depressão, depressão leva à desesperança, e desesperança leva ao suicídio” (depoimento retirado do livro Physician Suicide Letters, de Pamela Wible, M.D. 2016).

Além disso, dependência química (especialmente a álcool e a medicamentos), doenças terminais ou incuráveis e transtornos psiquiátricos (como Depressão, Transtorno Afetivo Bipolar, Transtornos de Ansiedade, Esquizofrenia, Transtornos Obsessivo-Compulsivos, Burn-Out) são agentes de importante influência sobre essa classe profissional.

“A associação entre depressão e suicídio é inequívoca. O risco de suicídio aumenta mais de 20 vezes em indivíduos com episódio de depressão maior e é ainda maior em sujeitos que apresentam comorbidade com outros transtornos psiquiátricos ou doenças clínicas” (LÖNNQVIST, 2000 apud BOTEGA, 2006, p.217).

Ademais, alguns traços de personalidade são importantes no estudo do risco de suicídio, como o humor instável (irritabilidade, agressividade, impulsividade excessivas), comportamento antissocial, dificuldade de aceitação da realidade, baixa tolerância à frustração, etc.

Concomitantemente, existem também hipóteses neuroquímicas, que relacionam o comportamento suicida a alterações dos sistemas serotoninérgico, noradrenérgico e dopaminérgico de neurotransmissão. Com manipulações farmacológicas (medicamentos), as atividades desses sistemas podem ser equilibradas.

Dentre os métodos preferenciados para encerrar a própria vida, os médicos utilizam, com maior prevalência, o envenenamento por medicamentos. Em seguida, estão os suicídios por arma de fogo. A especialidade mais atingida é a anestesiologia.

“Anestesiologistas são os mais representados em estudos relacionados à dependência química entre médicos. Em uma amostra clínica de 198 médicos brasileiros que apresentavam dependência foi observado que, apesar de os anestesiologistas representarem 3% da população médica, eles constituíram 12,5% dos médicos sob tratamento. Adicionalmente, a mortalidade relacionada ao suicídio e à dependência química entre anestesiologistas é maior que entre profissionais médicos de outras especialidades” (Revista Brasileira de Anestesiologia, Vol. 62, Nº 3, Maio-Junho, 2012).

Dentre as substâncias mais utilizadas pelos médicos estão os opióides, os benzodiazepínicos e o álcool. O consumo e a dependência dos medicamentos são facilitados pelo acesso maior a que a classe médica possui e pelo hábito desta à automedicação, especialmente contra insônia, ansiedade e dores físicas.

Diferentemente das outras classes profissionais, o maior obstáculo à diminuição desta fatídica estatística é o desinteresse da classe médica em se tratar devidamente.

“Os médicos são, em geral, extremamente resistentes a se tornarem pacientes. Há grande relutância a tratamento psíquico adequado. Preferem se automedicar, pedindo remédio ao colega” – ressalta a psiquiatra Jane Lemos, conselheira do CREMEPE e diretora da AMPE.

Portanto, reconhecer que necessitam de ajuda adequada, em todos seus âmbitos (psicológico, medicamentoso, psicossocial) e se submeter à terapêutica apropriada é o maior desafio para os médicos em geral, os quais, muitas vezes, não conseguem reestruturar e reequilibrar sozinhos as várias facetas do viver.

Antes mesmo da terapêutica, porém, é importante criar estratégias para a prevenção do comportamento suicida, pois isso não pressupõe apenas evitar a morte das pessoas, mas também alertar as implicações que o suicídio desencadeia na sociedade, como o mal-estar e o estado de perturbação que são gerados nesta. Assim, acredita-se que, com a promoção da qualidade de vida e de trabalho, de cuidados com a saúde, de auxílio ao enfrentamento de situações adversas, de criação de estratégias de comunicação e sensibilização, de fortalecimento da vida espiritual, possa-se minimizar e combater os fatores que levam ao comportamento suicida.

Apoio e confiança dos membros da família, busca de auxílio e aconselhamento, senso de valor pessoal, boa relação com amigos e colegas, valores culturais, prática de esporte e lazer são alguns dos fatores de prevenção/proteção para o suicídio preconizados pela OMS (2000-2001 apud WERLANG, 2004).

Ainda de acordo com o Ministério de Saúde (BRASIL 2006 apud VIEIRA, 2008), é importante estar atento a alguns sinais que compõem a história de vida e o comportamento das pessoas mais propícias a ingressarem em um comportamento suicida, como cartas de despedida, doenças físicas crônicas, menção repetida de morte ou suicídio, desejo súbito de concluir os afazeres pessoais (como organizar documentos, escrever um testamento), crises de ansiedade ou pânico, mudanças de personalidade.

“O suicídio é visto como um comportamento humano complexo. Inclui muitos comportamentos, atitudes e cognições, cujos limites são vagos e imprecisos e, nas últimas décadas, tornou-se grave problema de saúde pública” (LOUZÃ NETO, 2007, p. 475).

Portanto, mais do que nunca, aqueles que o tratam podem ser quem mais precisam de ajuda!

Autor: Dr. Pablo Bernardes – Médico do Trabalho (ANAMT/AMB), Perito Judicial/Assistente Técnico (TRT-GO), Professor de Pós-Graduação em Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (CENBRAP, CEEN-PUC/GO), Médico Coordenador do PCMSO da empresa HP Transportes e das clínicas ASMETRO, CLIMT e CLISMED, Pós-Graduando em Psiquiatria (CENBRAP), Membro Titular da ANAMT (Associação Nacional de Medicina do Trabalho), Membro Titular da APEJUST-GO (Associação dos Peritos na Justiça do Trabalho – 18ª Região), Associado da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), Autor do livro “Desvendando o Burn-Out – uma análise interdisciplinar da Síndrome do Esgotamento Profissional (LTr)” em conjunto com Dr. Marcos Mendanha e Dr. Pedro Shiozawa.

Dr. Pablo Bernardes escreve periodicamente para o Site SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Pablo”.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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