Prezados leitores.
Em seu art. 89, o vigente Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 1.931/2009) proíbe o médico de liberar cópias do prontuário sem a respectiva autorização (por escrito) do paciente, mesmo quando diante de uma solicitação judicial nesse sentido. Ao redigir essa norma, estou certo que a boa intenção do CFM era inquestionável: a preservação inegociável do sigilo médico e da intimidade do paciente. Mas não basta a boa intenção se a norma estiver em choque com alguma lei superior, conforme veremos à seguir.
CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA DE 2009 X CÓDIGO PENAL
Diante de um mandado judicial exigindo um prontuário, é comum que o médico não disponha de tempo e condições para colher imediatamente a autorização por escrito do respectivo paciente antes de fazer a entrega do prontuário à Justiça, como obriga que se faça o Código de Ética Médica de 2009. Pra complicar, lembro que o próprio paciente pode recusar tal autorização.
Por outro lado, descumprir um mandado judicial também não é um bom negócio para o médico (como não é para ninguém)! O art. 330 do Código Penal qualifica como crime o descumprimento de ordem (mandado) judicial. Esse crime em flagrante, em casos extremos, pode gerar ordem de prisão para quem o comete. E vale ressaltar que o Código Penal possui hierarquia privilegiada quando comparado às resoluções de autarquias (como é o caso do Código de Ética Médica) e, portanto, deve prevalecer em casos conflitantes.
Nesse contexto, para dar mais segurança jurídica aos médicos, em janeiro de 2018 os próprios CRMs passaram a orientar todos os médicos e estabelecimentos de saúde que encaminhem os prontuários médicos (ou documentos equivalentes), quando assim solicitados pelo juiz competente, independente da autorização do paciente, nos termos da decisão – que ainda é passiva de recurso – do processo judicial n. 5009152-15.2013.4.04.7200/TRF4 (decisão válida em todo território nacional) e do Ofício Circular CFM n. 16 de 31 de janeiro 2018.
NOVO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA DE 2018
Na mesma esteira chega o novo Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 2.217/2018), que entra em vigor em maio de 2019, quando atesta em seu art. 89:
“É vedado ao médico liberar cópias do prontuário sob sua guarda exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa, assim como quando autorizado por escrito pelo paciente.”
Observamos que o atendimento de ordem judicial passa a ser, por si só, condição suficiente para liberação das cópias do prontuário para a Justiça, não havendo mais a necessidade de autorização do paciente.
Dessa forma, o novo Código de Ética Médica de 2018 se alinha ao estabelecido no Código Penal e permite a liberação da cópia do prontuário, solicitada judicialmente, independente da autorização do paciente.
É o fim de um triste dilema que o Código de 2009 impôs aos médicos: excepcionalmente, escolher entre ser ético e cometer um crime (ou seja, não entregar o prontuário sem a autorização escrita do paciente mesmo diante de um mandado judicial), ou eventualmente ter que ser antiético para não ser preso (entregar o prontuário à Justiça, mesmo sem autorização do paciente, para evitar uma possível ordem de prisão). Desde 2011 que abordo essa questão aqui no SaudeOcupacional.org, veja um dos textos clicando AQUI.
Por apreço à legalidade, na minha opinião, a modificação trazida pelo novo Código de Ética Médica de 2018 é acertada e bem-vinda.
PRA QUEM ENTREGAR O PRONTUÁRIO?
Outra diferença marcante entre os Códigos de Ética Médica, de 2009 e 2018, diz respeito à entrega do prontuário em casos de solicitação judicial. Também no art. 89 dos dois dispositivos, enquanto o primeiro orientava a entrega “ao perito médico nomeado pelo juiz”, o Código de 2018 afirma que “o prontuário será encaminhado ao juízo requisitante”.
Mais um acerto do CFM no meu entender! Isto porque existem processos que sequer peritos possuem. Outros, por mais intrigante que isso pareça, possuem profissionais não médicos nomeados como peritos pelos próprios juízes para perícias que versam sobre temas médicos (algo não raro em algumas varas trabalhistas).
Ocorre que, independente da situação (sem perito, com perito e independente de quem seja o perito), o mandado judicial que solicita o prontuário médico continua tendo força legal nos termos do art. 330 do Código Penal. Portanto, se a ordem legal partiu do juízo, que a ao mesmo juízo seja entregue as cópias do prontuário nos termos do art. 89 do novo Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 2.217/2018), que, relembro, entrará em vigor apenas em maio de 2019.
CÓPIA OU ORIGINAL?
Em qualquer um dos Códigos de Ética Médica (seja o de 2009 ou 2018), a orientação é que se entregue as “cópias do prontuário”. Isto porque, em sintonia com o art. 425, VI, § 1, do Código de Processo Civil (CPC), “o prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o paciente” nos termos do art. 87 dos dois dispositivos (Códigos de 2009 e de 2018).
Convenhamos: se o objetivo judicial é o alcance da verdade, a cópia do prontuário é suficiente. O próprio STF (Supremo Tribunal Federal) entende como possível a não obrigatoriedade da entrega dos originais do prontuário, inclusive à Justiça, desde que não se dificulte as devidas investigações processuais, conforme decisão a seguir:
“EMENTA: SEGREDO PROFISSIONAL. A OBRIGATORIEDADE DO SIGILO PROFISSIONAL DO MÉDICO NÃO TEM CARÁTER ABSOLUTO. A matéria, pela sua delicadeza, reclama diversidade de tratamento diante das particularidades de cada caso. A revelação do segredo médico em caso de investigação de possível abortamento criminoso faz-se necessária em termos, com ressalvas do interesse do cliente. Na espécie, o Hospital pôs a ficha clínica à disposição de perito médico (…) por que se exigir a requisição da ficha clínica (original)? Nas circunstâncias do caso, o nosocômio, de modo cauteloso, procurou resguardar o segredo profissional.” (Acórdão de Recurso Extraordinário Criminal n. 91.218-5SP — STF)
E se o oficial de justiça exigir o prontuário original? Nesse caso, para evitar conflitos desnecessários, o médico pode optar por fazer uma fotocópia autenticada do prontuário e entregar a via original ao oficial de justiça (retendo, então, a via autenticada). Conforme interpretação do art. 423 do CPC, a cópia autenticada possui a mesma validade legal do documento original.
Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor dos livros “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” e “Desvendando o Burn-Out” (ambos da Editora LTr). Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas e do Congresso Brasileiro de Psiquiatria Ocupacional. Professor e Diretor da Faculdade CENBRAP. Colunista da Revista PROTEÇÃO. Membro da Câmara Técnica de Direito Médico do CRM-GO.
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.