Título original: A classificação de Schilling
Por Dr. Leonardo Biscaia – O médico inglês Richard Schilling publicou, em 1984, um prefácio muito interessante no periódico The Journal of the Society of Occupational Medicine abordando sucintamente a casuística de doenças entre os trabalhadores na Grã-Bretanha, as causas e as estratégias para lidar com elas.
O artigo de Schilling era a versão escrita de uma palestra apresentada em uma reunião da Society of Occupational Medicine ocorrida em julho de 1983. Embora a palestra tenha sido extensa e detalhada, o objetivo era fazer uma revisão abrangente sobre o tema, e não apresentar conceitos novos ou levantar discussões epistemológicas. Alguns dos aspectos teóricos apresentados ao longo do texto têm função heurística, isto é, servem para concatenar e explicar os diversos argumentos desenvolvidos, e certamente Schilling não propôs qualquer sistema teórico acabado e coerente sobre a relação entre a saúde e o trabalho. Em vez disso, ele se baseou na ideia de que a doença é fruto da interação entre “fatores inerentes ao trabalhador, o ambiente externo e o comportamento individual”, denominada por ele de “causalidade múltipla”.
É dentro desse entendimento que deve ser compreendida a tabela V, que aborda as “categorias de doença relacionada ao trabalho” e divide-as em 3 grupos:
I – Doenças nas quais o trabalho é uma causa necessária (p. ex., envenenamento por chumbo)
II – Doenças nas quais o trabalho é um fator causal contributivo, mas não necessário (p. ex., doença coronariana)
III – Situações nas quais o trabalho provoca uma desordem latente ou agrava uma doença estabelecida, como os casos de úlcera péptica ou eczema.
Ao apresentar essa categorização, Schilling não supôs que todas as doenças que acometem os trabalhadores têm relação com o trabalho. Na verdade, ele se referia apenas às doenças cujas causas já eram usualmente relacionadas ao trabalho, admitindo que havia doenças sobre as quais o trabalho tinha pouca ou nenhuma influência. A existência de doenças que não têm relação causal com o trabalho é uma consequência evidente e necessária do conceito em que se baseou: a inter-relação entre fatores individuais, o comportamento e o ambiente.
É interessante notar que, algumas páginas depois de abordar as doenças relacionadas ao trabalho, Schilling trata precisamente daquelas “que não são diretamente relacionadas ao trabalho” e sobre as oportunidades que surgem no ambiente laboral para controlá-las ou reduzir os seus efeitos sobre os trabalhadores. Entre essas oportunidades estão a vacinação contra rubéola e gripe, o combate à dependência química e o estímulo a mudanças de estilo de vida. Convém notar que apesar de propor estratégias de prevenção de doenças e promoção da saúde no ambiente laboral, Schilling não reconhece qualquer nexo de causalidade entre o trabalho e as situações clínicas mencionadas.
A discussão sobre as intenções de Richard Schilling em seu artigo é relevante na prática médica, pois transcende o debate acadêmico de exegese ou as leituras obrigatórias sobre Saúde Pública do início da graduação em Medicina. A partir da compreensão equivocada e insuficiente do texto publicado em 1984, desenvolveram-se tradições no campo da Saúde do Trabalhador e na jurisprudência do Direito do Trabalho que passaram a enxergar o trabalho como causa implícita em todas as doenças que acometem os trabalhadores.
Contudo, há doenças que não têm relação causal com a ocupação do indivíduo, sendo a única associação possível de se fazer entre elas o fato de que um trabalhador tem uma doença (ou, talvez, a de que um doente tem um trabalho). Assumir que todas as doenças, em algum grau, são causadas pelo trabalho, apelando-se para uma vaga “concausalidade” surgida das “classes Schilling II e III”, significa abdicar da pesquisa sobre o papel preciso de cada suposto agente etiológico, ao mesmo tempo em que faz do trabalho uma fonte de perpétuo sofrimento e não de realização humana. O ofício do médico somente pode ser feito se for orientado pela identificação correta e justa dos fatores causais das doenças, o que permite intervir adequadamente no diagnóstico e no tratamento.
Referência
Schilling RSF. More effective prevention in Occupational Health practice? Journal of Society of Occupational Medicine. 1984;34(3):71-9.
Autor: Leonardo Biscaia – Médico. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Formação em Medicina do Trabalho pela UFPR e em Gastroenterologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Sócio-fundador da Sociedade Paranaense de Perícias Médicas. Membro da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH). Professor da Especialização em Medicina do Trabalho da UFPR.
Fonte: Gen Medicina.
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