Em evento na cidade de Santos/SP, Dejours* mostra como trabalhador usa o seu saber e a importância de se repensar a organização do trabalho rumo à cooperação e à deliberação
“Trabalhar não é somente produzir, mas também transformar-se a si mesmo. Depois do trabalho, eu sou mais inteligente do que antes”. A frase foi dita por Christophe Dejours, psicanalista e psiquiatra francês, que esteve pela primeira vez em Santos/SP, no dia 14 de agosto. A palestra, promovida pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), com o apoio da Fundacentro, lotou o auditório do Sindicato dos Siderúrgicos e Metalúrgicos da Baixada Santista.
Criador da teoria Psicodinâmica do Trabalho, o pesquisador mostrou como a inteligência nasce do enfrentamento com o real. É preciso ultrapassar o prescrito para que o trabalho aconteça. O trabalhador usa para isso o seu saber, a sua experiência e sua inteligência. Há um espaço entre a tarefa e a atividade realizada.
Não é possível compreender o trabalho coletivo sem entender o trabalho individual. A ciência e a técnica não podem prever o que vai se passar. O real está sempre a desafiar o trabalhador, que precisa dar seu “jeitinho” para que tudo funcione. Por isso, o trabalho vivo é essencial. Nunca será possível substituir os trabalhadores totalmente por máquinas autônomas.
“As habilidades técnicas e o conhecimento científico são questionados. É um paradoxo. O real vem sempre questionando. Aquilo que a gente acreditava até então não é mais verdade. O real é o que se faz conhecer pela resistência ao domínio que se tem do trabalho”, explica Dejours.
É a analise do trabalho concreto e da experiência do trabalho que devem servir de base para a transformação da organização do trabalho. Também é preciso considerar a dimensão política do trabalho, que continua central nos dias atuais. O poder e a organização precisam ser repensados a partir dessas sugestões que vêm debaixo.
Sofrimento
O sofrimento está presente no trabalho. “O real se faz conhecer àquele que trabalha através do fracasso. Trabalhar é fracassar. Por isso, trabalhar é sempre sofrer. Não há trabalho vivo sem sofrimento. O que está em questão é o destino desse sofrimento. Sofrer no trabalho é inevitável para o operário na linha de montagem, para o médico diante do paciente”, afirma o psiquiatra.
No entanto, é preciso suportar o sofrimento, que ocorre enquanto a pessoa busca as soluções. “Suportar quer dizer ser capaz de voltar para a tarefa, tentar, fracassar, tentar de novo. A resistência a esse fracasso produz a solução. Esse é um segundo paradoxo. De tanto fracassar, vem uma ideia que eu nunca teria tido se não tivesse fracasso até chegar lá”, aponta Dejours.
Cada pessoa busca inventar por si mesmo e descobrir por si só. “Não se pode ensinar como a gente sente, experimenta o contato com o sofrimento. É preciso encontrar esse saber fazer. O que é essa inteligência? O fundamento dessa inteligência é encontrar esse saber fazer. É uma inteligência que repousa no corpo, que sente esse sofrimento. Sentir a resistência. É com o corpo. Mesmo nos trabalhos mais intelectuais, o corpo é o início das coisas, do sentir”, explica.
O corpo implicado não é o corpo dos biólogos. “É o corpo no qual eu moro, que experimenta afetos e sentimentos. Toda a expressividade do corpo que não é biológica. Nós temos dois corpos. Mas aquele que conta é esse segundo corpo. Nem todo mundo tem a possibilidade de construir esse segundo corpo”. Assim o essencial do trabalho é o engajamento da subjetividade, da personalidade, dos afetos, durante todo o tempo de trabalho, mas também durante toda a vida fora do trabalho.
“O essencial do trabalho vivo não faz parte do mundo visível. A gente não vê a subjetividade, os sonhos, os sofrimentos. O essencial do trabalho não se vê. O trabalho não pode ser medido. Então todos os métodos com os quais a gente mede o trabalho são falsos. No melhor dos casos o que a gente mede é o resultado do trabalho e tem uma diferença grande. Não há proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho”, alerta o psiquiatra.
Um dos pontos fundamentais para transformar sofrimento em prazer é o reconhecimento, que vem do julgamento do trabalho e não da pessoa. Há dois tipos de julgamento – o de utilidade (em que se reconhece a utilidade econômica, social ou técnica da contribuição própria do trabalhador) e o de beleza (aquele proferido pelos que conhecem a fundo o trabalho, os colegas, os pares, que possibilita um retorno de pertencimento a um coletivo, a um ofício, a uma comunidade).
Coletivo
O trabalho está totalmente tomado pelas relações com os outros. “É antes de tudo uma relação individual com a matéria, o objeto técnico, o cliente. A gente trabalha para alguém em geral”. Dessa forma, se cada um for inteligente ao seu modo, não vai funcionar. É preciso colocar as inteligências juntas e criar um ambiente de coordenação e cooperação. Por outro lado, há riscos em mostrar como você faz o seu trabalho.
“Por exemplo, eu dou um chute na mesa de controle, se o contramestre vê, terá uma sanção. Então olho antes se ninguém vê. Tenho um avanço na produtividade, prêmios, e há interesse de guardar meu segredo comigo mesmo. Então há sempre risco em mostrar o que a gente faz, mas para haver a cooperação há as ordens e o saber como cada um dá o seu jeitinho. Mas às vezes não temos coragem de dizer qual é esse jeitinho. Só mostramos se houver confiança, que não vem do céu. Não existe cooperação, se não há confiança”, defende Dejours.
Essa confiança precisa ser construída entre os membros de uma equipe. É preciso dedicar um tempo para que as pessoas contem suas astúcias, suas estratégias e confrontem seus métodos. Uns interpretam as ordens de um jeito, e outros de outra maneira.
“Em todas as profissões, há reuniões de equipe em que falam de seus pontos de vistas. Depois temos que escolher. Quando as discussões funcionam e se chega a um acordo, há um consenso. É o acordo normativo que vale para toda a equipe. A cooperação depende dessa construção, produção de regra – atividade deôntica”, afirma o teórico.
Deliberação
As pessoas discutem e deliberam nesse espaço público, conhecido desde Aristóteles. “Esse espaço público é de novo um paradoxo, pois está em um espaço privado. Então falamos em espaço de deliberação. Esse espaço público é o exercício da democracia. O trabalho é central politicamente. Quando aprendo a deliberar, aprendo a democracia”, diz reforçando a dimensão política do trabalho.
No entanto, proíbe-se o espaço de deliberação nas empresas, nos serviços públicos, nas pesquisas, pois algumas instituições são antidemocráticas. “A democracia na prática é difícil, que não vem só da organização, mas de nós mesmos. É preciso ter coragem para falar o que eu faço. Temos que ousar dizer, mas se eu digo o que faço, tenho que estar pronto para justificar. Mas a gente não sabe se vai conseguir justificar. Será que posso ter confiança neles – colegas e chefe?”, questiona.
No espaço de deliberação, é possível dizer aos outros o que até mesmo eu não sabia. “Mas esse milagre da palavra só pode ocorrer se quando eu falo, o outro me escuta. A escuta é arriscada – há o risco de falar, mas também o risco de ouvir. De repente você escuta o outro que você considerava um imbecil e ele tem razão. E você fica em dúvida e isso te angustia”.
Essa angustia pode ocorrer, por exemplo, quando um chefe de uma central nuclear escuta os seus técnicos afirmarem que a segurança nuclear não está garantida. Constatar isso o deixa angustiado, porque só se pode trabalhar ao se acreditar que tudo está sob controle.
“Toda regra do trabalho é regra sobre a eficácia do trabalho, mas também é regra do saber viver. É preciso falar, escutar, ter confiança, ela fabrica o mundo aberto à pluralidade. É uma regra para viver junto, que é o respeito ao outro, a ajuda mútua e a solidariedade. Toda regra do trabalho é regra de eficácia e de convivência”.
Assim a cooperação é o motor da saúde mental no trabalho e ocorre por meio do espaço de deliberação e da atividade deôntica. “Ser solidário com o colega. Se sua filha está doente, ele vai embora, e nós fazemos o trabalho dele, isso é prevenção à saúde mental. A solidariedade entre os trabalhadores é o meio mais eficiente para prevenir as doenças mentais, o que passa pela reorganização da cooperação horizontal, vertical e transversal (que é a que envolve o paciente ou o cliente). O exercício da democracia é necessário para trabalhar e conviver junto”, conclui o psicanalista.
O espaço de deliberação pode ocorrem nas reuniões de equipe, quando se faz os acordos e se constrói as regras, de modo que todos possam se expressar. Mas também nos intervalos para o café, para o almoço, nos espaços de informalidade, quando se conversa, brinca e se começa o trabalho crítico do que acabou de ser decidido. “Esses espaços de convivência permitem o compartilhamento das obras comuns. Mas há organizações em que esses espaços são proibidos”, alerta Dejours.
Desafios
Se ousar tomar a palavra e escutar os outros é um desafio, outro é o fato de as organizações de trabalho estarem ligadas ao neoliberalismo. “O sistema neoliberal não quer democracia, não quer cooperação. A cooperação para os neoliberais é a máscara que esconde não querer responsabilidades. Não há coletivo. Só há indivíduos, que precisam ser avaliados individualmente por sua performance. Agora o poder está na mão dos gestores, que só querem saber de objetivo e performance. Eles recusam e proíbem a cooperação”, critica Dejours.
É preciso reabilitar a cooperação. “Precisamos nos engajar nos espaços de deliberação e ter outro tipo de gestão, que foi experimentado em empresas públicas e privadas da França, nas quais as direções não aguentavam mais o sistema neoliberal de gestão e suas consequências sobre o trabalho e a saúde mental”, relata.
Um dos problemas vivenciados nessa organização do trabalho neoliberal é a ocorrência de suicídios. “Os suicídios não existiam antes dessas mudanças gestionárias. Existe suicídio no trabalho no Brasil, no Japão, na Coreia, em Taiwan, na Argentina, no Chile, na China.”
Para Dejours, outro tipo de gestão fundado na cooperação funciona, e os resultados são brilhantes em termos de saúde mental e até de competitividade. Mas ele alerta que apesar de haver experiências nesse sentido na França, não há políticas públicas para isso, pois o país também vive o neoliberalismo. Buscar consolidar esse novo caminho fundado na cooperação e na deliberação é o grande desafio.
Realização
O evento – “Sofrimento no trabalho hoje: possibilidades de intervenção e resistência” – foi organizado pela professora do Departamento de Saúde Clínica e Instituições da Unifesp da Baixada Santista, Laura Camara Lima. Para a realização, contou com a parceria da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp, da Fundacentro Baixada Santista, da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador – Renast, do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador – Cerest, da Prefeitura de Santos, do Sindicato dos Siderúrgicos e Metalúrgicos da Baixada Santista e da Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador – CIST Santos.
“Esse evento é uma correlação de forças. Juntos podemos nos articular para fazer coisas interessantes”, afirma Laura Lima. Na mesa de abertura, estiveram presentes: Florianita Campos, pró-reitora de Extensão da Unifesp; Fabiola Otero, chefe da Seção de Vigilância e Referência em Saúde do Trabalhador – Sevrest Santos; Josué Amador da Silva, chefe da Fundacentro Baixada Santista; Florenço Rezende de Sá, presidente do Sindicato dos Siderúrgicos e Metalúrgicos de Santos; e Idreno de Almeida, coordenador da CIST Santos.
*As falas de Dejours durante o evento foram traduzidas pela professora Laura Caramara Lima.
Fonte: clique AQUI.
Título otiginal: Trabalho possibilita a transformação de si.