O STF voltou a discutir o tema que há anos levanta questionamentos: o destino dos valores pagos como indenização por danos coletivos em ações civis públicas trabalhistas.
Desde 2018, Migalhas acompanha o debate e repete a pergunta que segue sem resposta clara: para onde vai o dinheiro das referidas condenações e de acordos firmados com o MPT – Ministério Público do Trabalho?
Sem resposta objetiva, o que existe é um cenário fragmentado, com destinações incertas, variadas e, muitas vezes, pouco transparentes.
A ausência de uma regulamentação legal precisa abre espaço para decisões distintas entre juízes, membros do MPT e divergências, agora, no próprio STF.
Lei x prática
A lei da ação civil pública (lei 7.347/85), no art. 13, determina que, em caso de condenação pecuniária, os valores devem ser revertidos a um fundo público destinado à reconstituição dos bens lesados. Esse fundo deve ser gerido por um conselho Federal ou estadual, com participação do MP e da sociedade civil.
Para dar efetividade a esse comando legal, foi instituído o FDD – Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, por meio da lei 9.008/95.
O FDD financia projetos voltados à proteção do meio ambiente, do patrimônio cultural, do consumidor e de outros interesses coletivos. A administração é responsabilidade de um conselho interministerial vinculado ao ministério da Justiça.
Contudo, a norma que criou o FDD não incluiu entre suas finalidades a reparação de danos trabalhistas.
Assim, embora já tenham se passado quase 40 anos desde a promulgação da lei da ação civil pública, ainda não há um fundo específico voltado à destinação de valores decorrentes de indenizações por danos sociais no âmbito trabalhista.
Diante dessa lacuna, a Justiça do Trabalho e o MPT passaram a destinar tais valores ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador, criado pela lei 7.998/90.
Todavia, os recursos do FAT possuem destinação legal específica, voltada ao pagamento do seguro-desemprego e ao financiamento da qualificação profissional, não contemplando, portanto, a reparação direta dos danos sociais que motivaram a atuação do MPT.
Além disso, não conta com a participação do MP na gestão, o que contraria o previsto no art. 13 da lei da ação civil pública, que exige esse controle social sobre a aplicação dos recursos.
Diante dessas limitações, decisões judiciais vêm admitindo a destinação dos valores decorrentes de ações civis públicas para outras finalidades de interesse social, inclusive mediante repasse a instituições públicas ou privadas que atuam na recomposição dos direitos lesados.
Essa prática tem respaldo em duas resoluções.
A resolução 179/17 do CNMP – Conselho Nacional do Ministério Público disciplina a celebração de compromissos de ajustamento de conduta e estabelece que os valores “referentes às medidas compensatórias decorrentes de danos irreversíveis aos direitos ou interesses difusos deverão ser, preferencialmente, revertidos em proveito da região ou pessoas impactadas”.
Já a resolução 154/12 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça trata da política institucional para a utilização de recursos oriundos da pena de prestação pecuniária, determinando que “os valores depositados, referidos no art. 1º, quando não destinados à vítima ou aos seus dependentes, serão, preferencialmente, destinados à entidade pública ou privada com finalidade social”.
Caminhos variados
A lacuna jurídica possibilita uma uma multiplicidade de destinos aos valores. São inúmeros os exemplos.
Em 2023, a Avon firmou acordo de R$ 3,5 milhões com o MPT por danos morais coletivos, com repasse a instituições públicas de segurança, saúde ou educação, escolhidas pelo parquet e aprovadas pelo Judiciário.
No mesmo ano, vinícolas envolvidas em flagrante de trabalho análogo à escravidão pagaram R$ 7 milhões. Parte foi destinada aos trabalhadores resgatados, e o restante, conforme o MPT, seria revertido a projetos para recomposição dos danos.
Casos anteriores seguem o mesmo padrão.
Em 2019, a Ford destinou R$ 10 milhões a duas entidades assistenciais indicadas pelo MPT e pela magistrada relatora. Em 2013, o McDonald’s pagou R$ 7,5 milhões, dos quais R$ 6 milhões financiaram uma campanha nacional de comunicação sobre direitos trabalhistas.
Soluções criativas
Em 2018, o procurador do Trabalho Márcio Amazonas, então chefe da assessoria jurídica da PGT, afirmou ao Migalhas que, diante da ausência de regulamentação específica, o MPT e a Justiça do Trabalho têm adotado soluções criativas para definir o destino dos valores arrecadados em acordos e ações civis públicas.
Segundo ele, os recursos podem ser revertidos para instituições sociais, órgãos públicos, fundos estaduais e o FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador. No entanto, como não há norma própria do Ministério Público sobre o tema, qualquer tentativa de regulamentação esbarraria na competência do Legislativo.
Márcio comentou que, na prática, a reversão em dinheiro direto para instituições é rara. Em geral, os procuradores optam por destinar os valores em forma de bens – como viaturas para a Polícia Federal – adquiridos e doados diretamente pelas empresas condenadas.
Embora o FAT seja o único fundo trabalhista federal regulamentado, muitos procuradores evitam usá-lo por não haver participação do MP em seu conselho deliberativo – conforme previsto na resolução Codefat 596/09.
Por isso, há preferência por fundos estaduais, especialmente onde há legislações mais estruturadas, como em Minas Gerais, São Paulo e Bahia.
Ele também explicou que o controle sobre a destinação depende da origem dos valores: se oriundos de processo judicial, a prestação de contas é feita ao juiz; nos casos de TAC, o procurador deve documentar todo o trâmite para fins de correição.
Quanto às multas por descumprimento de decisões, Márcio esclareceu que, por terem natureza processual, esses valores vão diretamente ao Tesouro Nacional, sem passar pelo MPT.
Fundação Dallagnol
A polêmica quanto a destinação de valores decorrentes de acordos e decisões judiciais não se limita à esfera trabalhista. O problema também se manifesta em outras áreas, como demonstrou o controverso acordo firmado pela Petrobras com autoridades norte-americanas no contexto da operação Lava Jato – um caso que escancarou a complexidade envolvendo a gestão de recursos oriundos de colaborações premiadas e multas.
Em 2018, a estatal brasileira firmou compromisso com a SEC – Securities and Exchange Commission e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, comprometendo-se a pagar cerca de US$ 1 bilhão, dos quais US$ 682,6 milhões foram repatriados e entregues ao MPF no Brasil.
De acordo com o MPF, os valores seriam aplicados em programas sociais e educacionais voltados à promoção da transparência e da cidadania. No entanto, o destino do montante gerou controvérsia: questionou-se por que recursos oriundos de um esquema que lesou a própria Petrobras – cujo maior acionista é o governo Federal – foram entregues ao órgão acusador, em vez de retornarem diretamente à vítima, isto é, à sociedade brasileira.
Na prática, o plano previa que mais de R$ 1 bilhão fosse depositado em uma conta vinculada à vara Federal de Curitiba.
Após dois anos, os rendimentos seriam transferidos para uma fundação de direito privado a ser criada pelos próprios procuradores da força-tarefa da Lava Jato. E, depois de cinco anos, o saldo remanescente seria destinado à fundação do MPF – tornando o órgão, portanto, parte interessada no processo movido por acionistas contra a estatal.
Em 8/3/2019, dois dias depois da conclusão do acordo, a juíza Federal substituta Gabriela Hardt, da 13ª vara de Curitiba/PR, homologou o documento, sustentando que este atendia ao interesse público.
Em 12 de março, a então procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, e o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ingressaram no STF contra a homologação. Na mesma data, os partidos PT e PDT também ajuizaram a ADPF 569, questionando a legalidade da destinação dos recursos.
Na mesma data, a força-tarefa da Lava Jato solicitou ao juízo a suspensão dos procedimentos para constituição da fundação privada que administraria os valores.
Em 15 de março, o ministro Alexandre de Moraes concedeu medida cautelar requerida pela PGR, suspendendo os efeitos do acordo. Na ocasião, o então advogado-Geral da União, André Mendonça – que viria a ser nomeado ministro do STF – defendeu a nulidade do acordo e afirmou que os recursos deveriam ser destinados à União.
Apesar do arquivamento da proposta de criação da Fundação Lava Jato, é relevante lembrar que, até abril de 2019, o STF havia homologado ao menos 110 colaborações premiadas no âmbito da operação, cujas multas somavam mais de R$ 784,87 milhões.
Em agosto do mesmo ano, por sugestão do ministro Bruno Dantas, o TCU decidiu investigar os acordos firmados pelo MPF e avaliar a existência de um “orçamento paralelo”.
Um mês depois, representantes da Câmara, do Senado e da PGR firmaram acordo, homologado por Alexandre de Moraes, que destinou cerca de R$ 2,6 bilhões da multa da Petrobras da seguinte forma: R$ 1,6 bilhão para a área da Educação e R$ 1,06 bilhão para a Amazônia Legal.
Em março de 2020, o mesmo ministro realocou R$ 1,6 bilhão para ações de combate à pandemia de covid-19.
Lava-Jato no STF
Essa tentativa de institucionalizar a gestão paralela de verbas públicas, sem autorização legislativa, fortaleceu críticas à autonomia do Ministério Público na destinação de recursos oriundos de acordos judiciais.
O STF foi instado a se manifestar na ADPF 569. Nela, o PT e o PTB pediam que a Corte conferisse interpretação conforme à CF ao art. 91, II, ‘b’, do CP, a fim de estabelecer que cabe exclusivamente à União a destinação de valores decorrentes de condenações criminais, colaborações premiadas ou repatriações, salvo em casos com previsão legal específica.
Em abril de 2024, antes do julgamento do feito, o CNJ aprovou resolução estabelecendo diretrizes para a administração de multas oriundas de acordos de colaboração e leniência.
A norma proíbe a destinação dos valores sem consulta à União e veda seu uso para promoção pessoal de autoridades ou interesses político-partidários.
No mês seguinte, o STF julgou a ADPF e decidiu que, na ausência de vítimas diretas ou terceiros de boa-fé, os recursos oriundos de acordos devem seguir a regra do art. 91 do CP e ser destinados à União, respeitando o devido processo orçamentário. Vedou, portanto, a destinação direta por iniciativa do MP ou do Judiciário, salvo previsão legal específica.
Em 2024, o ministro Dias Toffoli determinou que a PGR remetesse ao seu gabinete as investigações sobre eventual apropriação indevida de recursos públicos por parte da ONG Transparência Internacional, em relação ao acordo com a força-tarefa da Lava Jato.
Acordos trabalhistas no STF
Após se manifestar sobre a destinação de dinheiro em casos de acordos do âmbito criminal, o STF tem, agora, a missão de analisar a controvérsia em torno da destinação de valores oriundos de dano morais coletivos no âmbito de ações civis públicas trabalhistas.
Em discussão, como já mencionado, está a possibilidade de transferências diretas desses recursos para entidades e projetos sociais, ou se sua destinação deve seguir exclusivamente os moldes da legislação orçamentária, com repasse obrigatório a fundos públicos.
A ação foi movida pela CNI – Confederação Nacional da Indústra e questiona a flexibilidade atual na destinação desses valores, sustentando que ela afronta os princípios da legalidade orçamentária e da separação de Poderes.
Para a entidade, as indenizações devem obrigatoriamente ser direcionadas ao FDD ou ao FAT, cuja aplicação é regulada por conselhos gestores instituídos por lei.
A AGU – Advocacia-Geral da União concorda com a entidade.
Na direção oposta, representantes do MPT, da ANPR – Associação Nacional dos Procuradores da República e da Anamatra – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho defendem a manutenção da possibilidade de destinação direta a iniciativas locais.
Argumentam que o excesso de burocracia na execução dos fundos públicos comprometeria a eficácia e a celeridade das ações de reparação.
Solução de equilíbrio
Ministro Flávio Dino, relator do caso, na sessão plenária que começou a julgar o caso, propôs solução de equilíbrio.
Para S. Exa., é possível adotar múltiplos caminhos de destinação, desde que respeitados os princípios da legalidade, da publicidade e da fundamentação.
Considerou legítimas as destinações ao FDD e ao FAT, mas também reconheceu como válidas as transferências diretas, desde que respaldadas por resolução conjunta do CNJ e do CNMP, e desde que não estejam sujeitas a contingenciamento.
Segundo o relator, o bloqueio dos recursos já destinados fere sua natureza reparadora.
Voto divergente parcial
Ministro Dias Toffoli divergiu parcialmente. Embora tenha reconhecido a legitimidade das destinações ao FDD e ao FAT, rejeitou qualquer outra possibilidade, mesmo que prevista em resoluções do CNJ.
Para o ministro, o uso de verbas públicas por entidades privadas ou projetos não institucionalizados compromete o controle social.
Toffoli alertou para o uso de acordos judiciais como ferramenta de coação contra empresas. Segundo o ministro, mesmo quando têm chances de êxito no processo, elas se sentem forçadas a celebrar acordos para evitar retaliações ou desgastes com órgãos de fiscalização.
Ministro Gilmar Mendes, antes de pedir vista da ação, teceu duras críticas aos fundos privados.
“O que me preocupa, e infelizmente os precedentes não são cerebrinos, é a possibilidade de criação até de instituições privadas para a obtenção desses recursos”, afirmou o ministro.
Diante desse histórico, o ministro classificou como alarmante o fato de ainda haver incertezas quanto à correta aplicação dos recursos oriundos de acordos.
“Eu fico muito preocupado e é interessante que nós tenhamos essas perplexidades numa matéria que, a rigor, não deveria ter dúvida – os recursos desses acordos deveriam ir para finalidades públicas.”
Desde 2018, Migalhas acompanha de perto essa discussão e mantém viva uma pergunta que ainda carece de resposta objetiva: para onde vai o dinheiro?
A ausência de um regramento claro sobre a destinação de valores decorrentes de condenações por danos coletivos trabalhistas cria um ambiente de incerteza e opacidade, no qual o improviso institucional tem substituído a transparência esperada em um Estado de Direito.
Ao retomar esse debate, o STF não apenas se debruça sobre uma lacuna normativa persistente, mas também se vê diante da oportunidade de estabelecer balizas que reconciliem a eficácia da reparação dos danos sociais com os princípios constitucionais da legalidade orçamentária, da separação de Poderes e do controle social.
Seja qual for o rumo, o que se espera – e se cobra – é que a resposta venha acompanhada de clareza, publicidade e compromisso com o interesse público. Afinal, a dúvida não pode ser regra.
Fonte: Migalhas