“Dr. Marcos, boa tarde!
Trabalho na cidade de XXXXXX, que fica no interior do estado XXXXX. É muito comum eu estar atendendo no PSF (Programa de Saúde da Família) ou mesmo de plantão no Hospital Municipal, e trabalhadores me procurarem para que eu faça o exame admissional, exame demissional, etc. Não sou Médico do Trabalho, e muitas vezes, não sei nem a localidade de trabalho desses empregados. Pergunto: tenho obrigação de fazer esses exames?
Obrigado pela atenção.
XXXXX”
Essa é uma situação que muitos colegas médicos vivenciam. Antes de entrar no mérito da pergunta feita, entendo como necessário um breve enfoque no que tange a hierarquia das leis no Brasil (assim como já fizemos em outros textos desse blog).
Convém lembrar que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Nesse tipo de Estado, as leis costumam seguir uma hierarquia determinada. No Brasil, isso não é diferente. De maneira hiper simplificada, colocarei o ranking das principais normas que podem estar envolvidas com o assunto que trataremos:
1) Constituição Federal (a lei mais importante do Brasil, a qual todas as outras se submetem, e que nos Artigos 196 – 200 fala sobre o SUS e suas atribuições);
2) Lei Ordinária / Decreto-Lei (ex.: Lei 8.080 / 1990 e CLT);
3) Resolução de Autarquias*.
*Autarquias são órgãos da Administração Pública Indireta, como por exemplo: CFM (Conselho Federal de Medicina), COFEN (Conselho Federal de Enfermagem), COFFITO (Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional), CFO (Conselho Federal de Odontologia), Conselho Federal de Fonoaudiologia, Conselho Federal de Psicologia, etc. O Código de Ética Médica é uma Resolução do CFM (Resolução 1931 / 2009).
Vejamos agora o que a Constituição Federal fala sobre a relação do SUS com o cuidado e proteção dos trabalhadores:
“Art. 200 – Ao sistema único de saúde (SUS) compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;
VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.”
Na mesma esteira, a Lei 8.080 / 1990 (Lei Orgânica de Saúde – que fala sobre o SUS e suas atribuições, com base nos Artigos 196 – 200 da Constituição Federal), assim coloca:
“Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):
I – a execução de ações:
(c) de saúde do trabalhador.”
E prossegue:
“Art. 6o, § 3º: Entende-se por saúde do trabalhador, para fins desta lei, um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho, abrangendo:
V – informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética profissional.” (grifo nosso)
Pelo exposto, fica evidenciada uma obrigação constitucional do SUS com relação ao cuidado com a saúde dos trabalhadores. A Lei 8.080 / 91 esclarece ainda que até os exames de admissão, periódicos e demissão compõem o acervo de atribuições do SUS para com os trabalhadores.
Muitos devem estar perguntando: “mas o cuidado com a saúde dos trabalhadores não é atribuição da empresa?”
Vejamos agora a combinação dos Artigos 157 e 168 da CLT (Consolidação das leis Trabalhistas):
“Art. 157 – Cabe às empresas:
I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho.”
“Art. 168 – Será obrigatório exame médico, por conta do empregador, nas condições estabelecidas neste artigo e nas instruções complementares a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho:
I – a admissão;
II – na demissão;
III – periodicamente.”
Obs.: posteriormente, a Norma regulamentadora n. 7 inseriu também os exames de mudança de função, e retorno ao trabalho.
Pelo que vimos, conforme a CLT, os exames admissionais, periódicos, etc., são de responsabilidade do empregador (e não do SUS).
E agora? Qual das leis deve prevalecer: CLT ou Lei 8.080 / 1990?
Verifica-se aqui, o que no estudo do Direito recebe o nome de ANTINOMIA, ou seja, a presença de duas normas conflitantes, gerando dúvidas sobre qual delas deverá ser aplicada ao caso singular. Para solucionar esse conflito de normas, a doutrina jurídica apresenta algumas alternativas, que devem ser usadas sucessivamente: (a) critério hierárquico (norma superior revoga a inferior); (b) critério da especificidade (norma especial revoga norma geral que trate do mesmo tema) , (c) critério cronológico (norma posterior revoga norma anterior).
No caso em tela, a Lei 8.080 / 1990 e a CLT ocupam a mesma posição hierárquica (status de Lei ordinária). Sendo assim, meu entendimento caminha no sentido de que a CLT é mais específica (e atualmente mais eficaz) do que a Lei 8.080 / 1991 no que se refere aos cuidados para com os trabalhadores, e portanto deve prevalecer. Tanto a CLT prevalece, que quando alguém é processado por negligência às regras de segurança e saúde no trabalho, esse alguém, em regra, é a empresa, e não o SUS.
Quando coloco que a CLT deve prevalecer sobre a Lei 8.080 / 1990, entendo também que esse fato não exclui as atribuições do SUS. Pelos consagrados princípios da universalidade e igualdade, o SUS não pode se furtar da responsabilidade de cuidar também da saúde do trabalhador, nos termos da lei. Apenas para refletirmos: como o SUS seria universal, negando ao trabalhador um exame periódico (conforme determina ao SUS a própria Lei 8.080 / 1990)?
No entanto, no que concerne ao cuidado para com os trabalhadores, acredito que o SUS tem uma responsabilidade subsidiária. Interpretando: a responsabilidade maior de cuidar da saúde do trabalhador é consagradamente da empresa. No entanto, caso a empresa seja negligente, o SUS não poderá se ausentar do cuidado para com o trabalhador, conforme Art. 200, inciso II da Constituição Federal, e nos consagrados princípios norteadores do SUS, explícitos na Lei 8.080 / 1990, entre eles o da universalidade e igualdade do atendimento.
A partir dessa presunção, muitos médicos do serviço público devem estar se perguntando, por exemplo:
Caso a empresa encaminhe um trabalhador para o meu posto de saúde, como vou fazer um exame admissional bem feito se não conheço os riscos existentes na empresa do trabalhador que estou avaliando? E quanto aos exames complementares: como saber, por exemplo, se devo ou não pedir uma audiometria se não conheço a realidade da empresa?
De fato não há como fazer um exame completo (que inclui os necessários exames complementares específicos para promoção da saúde de determinados trabalhadores em funções peculiares) sem o prévio conhecimento do ambiente de trabalho dessa empresa. Muitos médicos que se vêem nessa situação optam imediatamente pela recusa da realização desses exames, o que apesar de ser questionável no aspecto legal (conforme parágrafos anteriores), é uma conduta que compreendo. A justificativa usada por eles é o Código de Ética Médica, que no Capítulo II item V, diz que o médico não é obrigado a realizar procedimentos sem condições adequadas, salvo em casos de urgência e emergência.
Apesar da conduta imediata do médico de recusar a realização do exame (citada acima) ter o meu respeito e simpatia, legalmente falando, acredito que ela não seja a mais adequada num primeiro momento. Por que? Pois entendo que ela afronta diretamente o Art. 200, inciso II da Constituição Federal, lei maior do nosso país (superando em muito o Código de Ética Médica), que também delega ao SUS a responsabilidade de cuidado para com os trabalhadores. Assim, quando ocorrer de um trabalhador chegar no serviço público para solicitar, por exemplo, um exame admissional, entendo que o médico que o atende deve assumir o papel de “responsável médico examinador”, pelo menos enquanto não houver um médico indicado pela empresa para esse fim, conforme determina item 7.3 (e seguintes) da Norma Regulamentadora n. 7 (Portaria do MTE n. 24 / 1994). Nessa perspectiva, proponho as seguintes condutas (trata-se apenas de uma sugestão):
1) Que o médico do serviço público deixe claro ao trabalhador que a responsabilidade maior de realização desse exame é da empresa, conforme Art. 157 e 168 da CLT;
2) Que o médico do serviço público comunique ao trabalhador que só tem condições de concluir o exame admissional e emitir um ASO (Atestado de Saúde Ocupacional), se tiver conhecimento pleno do conteúdo de um documento chamado PCMSO (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional), que deverá (ou pelo menos deveria) estar em posse da empresa. Nesse documento são indicados quais os riscos o trabalhador estará submetido, e os exames complementares pertinentes as esses riscos (caso haja), conforme item 7.4 (e seguintes) da Norma Regulamentadora n. 7 (Portaria do MTE n. 24 / 1994). Assim, o médico deve solicitar previamente esse documento, e colocar como condicionante da realização desse exame admissional, a avaliação do PCMSO dessa empresa. O texto pertinente do PCMSO deverá ser anotado no prontuário do paciente (se possível, xerocado), e com base nele, proceder o exame admissional com a respectiva solicitação dos exames complementares (caso haja). Ratifico ainda que, o ideal seria que o médico também visitasse o ambiente laboral do trabalhador em análise, o que na prática é muito difícil para o médico do serviço público;
3) Após satisfeitas todas essas etapas (incluindo a análise dos resultados dos exames complementares e respectiva anotação em prontuário do paciente), proceder então a emissão do ASO (Atestado de Saúde Ocupacional), nos termos do 7.4.4.3 da Norma Regulamentadora n. 7 (Portaria do MTE n. 24 / 1994), e assim concluir o procedimento relativo ao exame admissional desse trabalhador, cumprindo exatamente os mesmos moldes determinados na legislação celetista;
4) Para que essa situação não se torne freqüente, a ponto de gerar acomodação no empregador quanto à atuação do médico do SUS como “médico examinador”, é recomendável que se notifique o Ministério do Trabalho / Ministério Público do Trabalho no sentido de exigir dessa empresa a indicação de um médico responsável pelos exames dos seus empregados, conforme determina o item 7.3 (e seguintes) da Norma regulamentadora n. 7 (Portaria do MTE n. 24 / 1994).
Percebam que a conduta que sugiro não afronta o Art. 200, inciso II da Constituição Federal, pois não isenta o SUS do cuidado para com os trabalhadores. Ao mesmo tempo, tal conduta não se faz negligente para o médico, uma vez que este exige um conhecimento prévio da empresa (através da análise do PCMSO) para efetivar o respectivo exame admissional, e solicitar todos os exames complementares que porventura sejam necessários.
E se a empresa não dispuser do PCMSO e ainda assim insistir para que o médico do SUS faça o referido exame admissional? Nesse momento sim, entendo como adequada a recusa do médico em realizar tal exame nos termos do Capítulo II, item V do Código de Ética Médica. Alguns irão perguntar: “mas isso não afrontaria o Art. 200, inciso II da Constituição Federal?”
Imaginem a seguinte situação: um médico que cuida de um paciente diabético, que não está em situação de urgência / emergência, solicita uma exame de glicemia de jejum. Na consulta posterior, o paciente está bem clinicamente, mas não apresenta o exame solicitado. Age com ilegalidade ou negligência o médico que mantiver a medicação, remarcar a consulta, e ratificar que o tratamento só terá seguimento mediante verificação do exame de glicemia de jejum? Claro que não. Muito pelo contrário. Qualquer conduta do médico nesse momento, sem o conhecimento prévio do exame, poderia prejudicar o tratamento já instituído. De maneira análoga, é a exigência do PCMSO para efetivação do exame admissional. Na conduta que propomos, percebam que houve a disposição do médico em cuidar da saúde do trabalhador (nos termos do Art. 200, inciso II da Constituição Federal), mas para que as condições desse ato médico sejam adequadas (nos termos do Capítulo II, item V, do Código de Ética Médica) o PCMSO é imprescindível. A confecção (e implementação) do PCMSO, no entanto, é de responsabilidade consagrada da empresa, nos termos do Art. 157 da CLT, e quanto a isso não há o que se discutir.
É bem provável também que o simples fato de o médico exigir o estudo do PCMSO da empresa para proceder a realização do exame, possa culminar com a adoção de medidas próprias dessa empresa para o cuidado com a saúde dos seus trabalhadores. É uma possibilidade cuja efetivação todos nós torcemos, pois remete ao empregador uma responsabilidade que, em primeira instância, de fato é dele. Caso isso não ocorra, eu repito: é recomendável que se notifique o Ministério do Trabalho / Ministério Público do Trabalho no sentido de exigir dessa empresa a indicação de um médico responsável pelos exames dos seus empregados, conforme determina o item 7.3 (e seguintes) da Norma regulamentadora n. 7 (Portaria do MTE n. 24 / 1994).
Em minha sugestão de conduta, citei como exemplo um exame admissional. Mas essa conduta extrapola-se para outros tipos de exames, tais como: periódico, demissional, mudança de função e retorno ao trabalho.
É o que sinceramente penso sobre o tema. Fiquem à vontade para opinar.
Um forte abraço a todos.
Que Deus nos abençoe.
Marcos Henrique Mendanha
E-mail: marcos@asmetro.com.br
Twitter: @marcoshmendanha